Vissungos
A palavra “vissungos” não é muito familiar para nós. Vem do “Umbundo”, língua Banta, de Angola, na África, e quer dizer “canto”, ou...
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A palavra “vissungos” não é muito
familiar para nós. Vem do “Umbundo”, língua Banta, de Angola, na África, e quer
dizer “canto”, ou cantigas. Pois bem. Os negros que vieram dessa região da
África para o Brasil, trouxeram, naturalmente, sua língua e cultura. Em
Minas Gerais, sobretudo, nas regiões mineradoras, essa forma de canto existiu e
deixou-nos suas características.
O pesquisador mineiro Aires da Mata
Machado Filho, identificou diversos vissungos em São João da Chapada e Quartel
do Indaiá, Município de Diamantina, em 1928. Entre 1939 e 1940 ele publicou o
resultado de sua pesquisa na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Ao
todo, foram 65 vissungos com letra, música e tradução além de dois glossários
de “Língua Benguela”. Essas publicações foram, posteriormente, reunidas em
livro (Suplemento produzido pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas
Gerais – Outubro de 2008). Dez anos após as pesquisas de Mata Machado,
João Dornas Filho pesquisou o mesmo assunto no povoado de Catumba, nas
proximidades de Itaúna, MG. Em “Undaca de Quimbundo” elencou mais de 200
palavras ou expressões bantos (Novo Dicionário Banto do Brasil).
Em Minas Gerais, grande número de
palavras bantas, acabaram entrando em nosso vocabulário. Assim pronunciamos
mesmo sem notar palavras como:
Angu,babaca, caçamba,dengo,
engambelar,fofoca,ginga,indaca, jiló,lundu, macumba, pamonha, quiabo, ranzinza,
songamonga, tocaia, umbanda,tunda, vissungo, xingar, zabumba...
Os vissungos são chamados “cantos de
trabalho”, pois os negros tinham o hábito de cantar enquanto trabalhavam.
Cantavam saudando o dia, a noite e as estrelas; cantavam para sepultar os
mortos e para saudar um novo companheiro de trabalho. Essa modalidade de canto
era chamada de “multa”. As músicas de “incelências” eram próprias para o
enterro dos mortos. Num contexto de muita exploração, mesmo após a Lei Áurea, o
canto numa língua diferente servia também para enganar o "patrão".
Assim, um negro poderia anunciar que havia encontrado o diamante sem que o
"feitor" entendesse.
Na época da escravidão os colonizadores
portugueses trouxeram para o Brasil escravos procedentes de muitas regiões da
África. Esses escravos pertenciam a diversos grupos étnicos, dentre os quais
podemos destacar os negros bantos e sudaneses. Os bantos vieram do sul (Angola,
Congo, Moçambique...) e foram espalhados em quase todo o litoral brasileiro. Os
sudaneses ou nagôs (língua Iorubá), vieram da região do Níger e concentraram-se
principalmente na Bahia. Segundo a escritora e pesquisadora J. Elbein dos
Santos ( Os Nagôs e a Morte, pp 31), os africanos de origem Bantu, do Congo e
de Angola, vieram para o Brasil durante o duro período do desbravamento da
Colônia e foram distribuídos em pequenos grupos num imenso território
envolvendo Minas, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Enquanto os
negros de origem sudanesa, os Jeje do Daomé e os Nagôs, chegaram mais tarde no
último período da escravatura. Esses ficaram mais concentrados nas regiões
urbanas e tiveram mais chances de ter sua cultura mais preservada. Eles
povoaram os estados do Norte, Nordeste, principalmente na capital baiana e
pernambucana. Além disso, o comércio intenso entre Bahia e a Costa Africana,
manteve os Nagôs do Brasil em contato permanente com suas terras de
origem. Morando nas cidades ao final da escravidão os negros Nagôs
tiveram mais oportunidades de se agruparem. Os terreiros de Candomblé, eram
como se fossem miniaturas da África, no Brasil. Nesses locais a língua Yorubá
foi preservada e ainda é falada entre os adeptos daquele culto.
Em razão das inúmeras dificuldades, os
Bantos não conseguiram preservar, com facilidade, sua língua de origem. Ela acabou
se misturado à língua portuguesa e, por isso, centenas de palavras bantas, são
faladas como se fossem palavras originais da língua portuguesa. O escravo da
mineração e agricultura vivia pouco e os agrupamentos eram em sua maioria
compostos por homens. Por causa das difíceis condições o índice de mortalidade
costumava ser maior do que o de natalidade.
Os cantos vissungos quase sempre falam
da lua, das dificuldades dos negros, da agricultura e da luta pela vida. Às
vezes, misturam elementos da religiosidade africana com a fé católica. Os
cantos, sua tradução e entendimento, constituía o que os negros chamavam
de: "fundamentos" . Aos brancos não eram dados todos os
fundamentos. Isso acontecia até mesmo para preservar segredos de quem vivia das
incertezas da mineração.
Trabalhar cantando não era um hábito
apenas dos negros nessas regiões. Era, e ainda é, muito comum em diversas
regiões do Brasil, de Portugal e outros países. Quem não conhece a música
"Peneirando Fubá" e tantas outras que são apropriadas para se cantar
enquanto trabalha?
Em um de seus álbuns (Canto da Terra -
2007) o cantor Roberto Leal, falecido em setembro de 2019, gravou alguns cantos
de trabalho cantados em “mirandês”, língua falada na região de Miranda do Douro
em Portugal. Confira abaixo um trecho da letra de:
“La Molineira”
Estando la molinera
Sentadita en su molino
Passou por alla un soldado, olé olé
Vengo de moler el trigo
Que vengo de moler morena
Tradução
Enquanto a moagem
Sente-se em moedor
Passou um soldado lá, ole ole
Eu venho de trigo de moagem
Eu venho de terra marrom
Mas voltemos aos vissungos. Em 1982, 14
dos 65 vissungos coletados por Mata Machado foram gravados nas vozes de
Clementina de Jesus, Dona Doca e Geraldo. O álbum foi chamado de Canto dos
Escravos. Nas gravações percebe-se uma leitura nagô-iorubá dos cantos de
tradição banto. Veja abaixo um trecho da letra do vissungo de número 62:
solo:
Muriquinho piquinino,
ô parente,
muriquinho piquinino
de quissamba na cacunda.
Purugunta adonde vai,
ô parente.
Purugunta adonde vai
Pru quilombo do Dumbá:
coro:
Ei, chora-chora ngongo ê devera
chora, ngongo, chora
Ei, chora-chora ngongo ê cambada
chora, ngongo, chora
Como se pode perceber é muito bom poder
estudar e pesquisar os vissungos. Buscar entendê-los é mergulhar nas raízes do
Brasil. A cultura das diversas etnias africanas, dos povos indígenas somada com
a dos europeus que aqui chegaram formou o que hoje chamamos de Brasil.
Temos uma única língua oficial. Mas ela
foi como um rio caudaloso que, ao longo do seu curso, recebeu águas de outras
fontes e assumiu um colorido próprio. Temos uma língua portuguesa verde-amarela
e com tons diversos. Precisamos preservá-la, valorizá-la e, enquanto
possível, recuperar o que se perdeu ao longo do tempo.
Ouça abaixo, o Especial "Vissungos", apresentado por mim em uma das edições do Programa Sala Vip, que vai ao ar nas tardes de domingo, pela Rádio Santa Cruz, em Pará de Minas:
Fontes Consultadas:
As Religiões Africanas no Brasil, de
Roger Bastide, Vol 1.
Carneiro Edson, Religiões Negras; Negros bantos. Civilização Brasileira,
RJ - 1981
Novo Dicionário Banto do Brasil – Nei
Lopes, Pallas – RJ – 2003
Suplemento produzido pela Secretaria de
Estado de Cultura de Minas Gerais – Edição especial: Cantos Afro-descendentes,
Vissungos. Belo Horizonte, MG – Outubro de 2008.
Os Nagôs e a Morte, de Juana Elbein dos
Santos.
O Negro e o Garimpo em Minas Gerais,
livro de Aires da Mata Machado Filho,
Voney J Berekenbrock - A Experiência
dos Orixás. Editora Vozes.
Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay
Obs: No Vídeo abaixo, Roberto Leal canta La Molinera.
Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay
Obs: No Vídeo abaixo, Roberto Leal canta La Molinera.