Nessa hora tristonha e pálida quando o dia desfalece meus
ouvidos contemplam uma perfeita sinfonia. Enquanto uma cigarra canta, ao longe,
outra canta serrotando o silêncio em torno de mim. Uma terceira espécie canta,
por sua vez, uma melodia diferente, suave, que me faz lembrar quando a gente
soprava a boca de uma garrafa quando criança. A chuva que parece suspensa teima
em não cair enquanto as cigarras cantam com indiferença no agonizar do dia. O céu enferrujado e com semblante carregado
parece não notar aquela sinfonia vespertina.
A rua está quase deserta. Apenas dois homens conversam,
preguiçosamente, na pracinha que, depois da chuva, se revestiu de verde. São 18h
e estamos no mês de novembro. Parece que ninguém nota os variados ruídos desse final
de tarde. Por minha vez, enquanto percebo essa explosão de vida escrevo esse
texto sob uma variedade de sons que me vêm pela janela. Daqui a pouco as
cigarras calarão para ceder lugar aos insetos da noite que voarão desesperados
em torno das lâmpadas. E assim a vida vai passando nas dobras dos dias e no
embrulhar das noites.
Escrever é deixar no papel um rastro de tinta que dobra e
requebra com a força dos dedos sobre a caneta. A escrita nasce de uma provocação
oriunda do cotidiano enquanto lugar de revelação. É no varejo da existência que
a vida acontece meio envergonhada ao se despir diante de quem escreve sobre
ela. Assim, até mesmo um final de tarde, embalado de música, pode servir ao
texto.
As cigarras ainda cantam ao longe, agora, cada vez mais baixo,
como se reverenciassem as primeiras estrelas no céu enferrujado. A vida segue o
seu curso e a terra vira as costas ao sol para contemplar a luz prateada da
lua. Amanhã tudo volta ao seu curso normal provando mais uma vez que a vida
vale a pena.
Imagem de Noël BEGUERIE por Pixabay
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