Como falar com rigor sobre algo inefável, algo que não pode ser expresso com palavras? Um discurso rigoroso sobre o inefável deve falsificar a apresentação do seu objeto, por isso acabará não traduzindo a realidade verdadeira... Assim começa a reflexão sobre a Teogonia dos Deuses de Hesíodo. Um discurso sobre a experiência do sagrado é algo pretensioso demais, sendo que, o sagrado é indescritível. Portanto, tal discurso acabará frustrando o leitor enquanto discurso rigoroso.
O questionamento acima trata dos limites da palavra para traduzir certas realidades. De fato, tudo o que falamos sobre Deus, por exemplo, não consegue traduzir a realidade divina. Para Hesíodo, talvez, o mais antigo poeta grego, a palavra que nomeia as realidades e os seres é algo divina. É filha de Zeus com Mnemosyne (memória). Hesíodo viveu por volta do Séc. VIII a C, numa sociedade anterior a polis, ao alfabeto e à moeda. Numa época, sem alfabeto, a palavra oral ganhava status divino. Era a responsável pela preservação da memória de um povo. Sócrates, no Fedro, chegou a afirmar que o alfabeto tem caráter deletério para a memória... Isso é muito difícil de entender numa sociedade como a nossa aonde as tradições orais vão se perdendo aos poucos pela palavra escrita. Além do mais, numa sociedade “globalizada” o cultivo da deusa memória pode ser uma ameaça. Quando de forma massificada todos devem engolir os mesmos produtos do mercado, não interessa muito a afirmação das identidades locais. Porque o índio usaria flechas em vez de revólveres e calças jeans em vez de suas roupas tradicionais?
Na comunidade agrícola de Hesíodo o poeta cantor (aedo) representa o máximo da tecnologia de comunicação. Ele tem o segredo das musas que são as palavras cantadas, filhas de Zeus e Mnemosyne. Com elas ele transmite às novas gerações toda uma visão de mundo e a consciência da própria história. Nesse sentido o poeta tem mais poder do que o rei (Basileîs). Ele era um cultor da memória, memória essa solapada e entorpecida pelo surgimento do alfabeto. A força da palavra pronunciada pelo poeta era algo quase mágico. Ela estabelece uma ligação entre o nome e a coisa nomeada. Quase um século após Hesíodo, com Arquíloco de Paros e sua poesia lírica é que a palavra ganha nova forma de manifestação com o surgimento da polis e uso do alfabeto. O nome então torna-se um signo convencionado para a coisa nomeada. Com os poetas líricos as forças cósmicas (deuses) são transmutados em realidades humanas: Éros passa a ser amor; Éris, rivalidade; Aidós, pudor... As condições oferecidas pelo alfabeto aprisionam a palavra pela arte da escrita e despoja-a, do seu poder encantatório e de sua magia musical e imagética.
Em Hesíodo as palavras são forças divinas, verdadeiras deusas nascidas de Zeus e Mnemosyne, são as Musas. Elas tinham poder de tornar presentes os fatos passados e futuros (Teogonia: VV.38), de restaurar e renovar a vida (Teogonia: 98-103). Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia foi oral e o centro da vida espiritual dos povos que em torno do poeta celebrava os diversos momentos da existência. Penso que isso valeu também para os salmos. Antes de serem escritos, provavelmente eram guardados no coração dos devotos. Quando falamos “de cor”, na verdade, falamos de cordis, ou seja, do coração. E o coração não fala ele dança e se agita no peito. A Bíblia mostra que a palavra é criadora de vida. Deus disse: Faça-se a luz. E a luz apareceu. Na verdade a palavra é vida. No Cristianismo ela se fez carne e habitou entre nós.
A Palavra cantada, as musas são filhas de deuses e criadoras de vida. Elas tem o poder e o encantamento de produzir o que pronunciam. Mas, o inverso também é verdadeiro. Pronunciando sobre uma realidade nefanda e catastrófica a catástrofe também ganha realidade. Por isso, cabe às musas revelar e velar ao mesmo tempo. Revelar a beleza e velar o nefando, o que não deve ser dito, o mal-dito.
Seria bom se guardássemos apenas isso: a palavra cantada é uma força divina que eleva e recria o homem. Ela não é um conjunto frio de signos abstratos e vazios. É capaz de produzir o extase do poeta que ao cantar uma realidade luminosa é iluminado também.
Obs: Texto inspirado em:
Teogonia: A Origem dos Deuses. Hesíodo. São Paulo, Palas Athena, 2003.
O questionamento acima trata dos limites da palavra para traduzir certas realidades. De fato, tudo o que falamos sobre Deus, por exemplo, não consegue traduzir a realidade divina. Para Hesíodo, talvez, o mais antigo poeta grego, a palavra que nomeia as realidades e os seres é algo divina. É filha de Zeus com Mnemosyne (memória). Hesíodo viveu por volta do Séc. VIII a C, numa sociedade anterior a polis, ao alfabeto e à moeda. Numa época, sem alfabeto, a palavra oral ganhava status divino. Era a responsável pela preservação da memória de um povo. Sócrates, no Fedro, chegou a afirmar que o alfabeto tem caráter deletério para a memória... Isso é muito difícil de entender numa sociedade como a nossa aonde as tradições orais vão se perdendo aos poucos pela palavra escrita. Além do mais, numa sociedade “globalizada” o cultivo da deusa memória pode ser uma ameaça. Quando de forma massificada todos devem engolir os mesmos produtos do mercado, não interessa muito a afirmação das identidades locais. Porque o índio usaria flechas em vez de revólveres e calças jeans em vez de suas roupas tradicionais?
Na comunidade agrícola de Hesíodo o poeta cantor (aedo) representa o máximo da tecnologia de comunicação. Ele tem o segredo das musas que são as palavras cantadas, filhas de Zeus e Mnemosyne. Com elas ele transmite às novas gerações toda uma visão de mundo e a consciência da própria história. Nesse sentido o poeta tem mais poder do que o rei (Basileîs). Ele era um cultor da memória, memória essa solapada e entorpecida pelo surgimento do alfabeto. A força da palavra pronunciada pelo poeta era algo quase mágico. Ela estabelece uma ligação entre o nome e a coisa nomeada. Quase um século após Hesíodo, com Arquíloco de Paros e sua poesia lírica é que a palavra ganha nova forma de manifestação com o surgimento da polis e uso do alfabeto. O nome então torna-se um signo convencionado para a coisa nomeada. Com os poetas líricos as forças cósmicas (deuses) são transmutados em realidades humanas: Éros passa a ser amor; Éris, rivalidade; Aidós, pudor... As condições oferecidas pelo alfabeto aprisionam a palavra pela arte da escrita e despoja-a, do seu poder encantatório e de sua magia musical e imagética.
Em Hesíodo as palavras são forças divinas, verdadeiras deusas nascidas de Zeus e Mnemosyne, são as Musas. Elas tinham poder de tornar presentes os fatos passados e futuros (Teogonia: VV.38), de restaurar e renovar a vida (Teogonia: 98-103). Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia foi oral e o centro da vida espiritual dos povos que em torno do poeta celebrava os diversos momentos da existência. Penso que isso valeu também para os salmos. Antes de serem escritos, provavelmente eram guardados no coração dos devotos. Quando falamos “de cor”, na verdade, falamos de cordis, ou seja, do coração. E o coração não fala ele dança e se agita no peito. A Bíblia mostra que a palavra é criadora de vida. Deus disse: Faça-se a luz. E a luz apareceu. Na verdade a palavra é vida. No Cristianismo ela se fez carne e habitou entre nós.
A Palavra cantada, as musas são filhas de deuses e criadoras de vida. Elas tem o poder e o encantamento de produzir o que pronunciam. Mas, o inverso também é verdadeiro. Pronunciando sobre uma realidade nefanda e catastrófica a catástrofe também ganha realidade. Por isso, cabe às musas revelar e velar ao mesmo tempo. Revelar a beleza e velar o nefando, o que não deve ser dito, o mal-dito.
Seria bom se guardássemos apenas isso: a palavra cantada é uma força divina que eleva e recria o homem. Ela não é um conjunto frio de signos abstratos e vazios. É capaz de produzir o extase do poeta que ao cantar uma realidade luminosa é iluminado também.
Obs: Texto inspirado em:
Teogonia: A Origem dos Deuses. Hesíodo. São Paulo, Palas Athena, 2003.
Muito aproveitoso este texto inclusive em seu desfecho ,muito obrigado ,podemos expressar várias coisas através das palavras cantadas....
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