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terça-feira, 14 de outubro de 2025

A Memória e a poesia

Que força pode ter a poesia e a tradição oral num mundo de satélites, canhões e arranha-céus? Essa é uma boa pergunta para começarmos o nosso texto. Para falar de poesia é preciso falar antes, da força da palavra dita, oralmente, ou cantada. Hoje, somente a palavra escrita parece gozar de confiabilidade. A palavra falada pode voar como o vento. Aliás o “alada” de falada, lembra-nos um voo. Mas, quem disse que o vento não tem força? Ele, em sua aparente imaterialidade não foi usado, tantas vezes, como imagem de Deus?  Então, podemos buscar a força da poesia antes mesmo do texto escrito, do “alfa-beto.” Paradoxalmente, o alfabeto que surgiu como forma de imortalizar a palavra, parece assassiná-la antes de torna-la imortal. Um texto escrito, torna-se assim, apenas, o fóssil de uma ideia original.

Na Grécia antiga, o poeta cantor (aedo) cantava seu poema sem auxílio de caneta ou papel, aliás, nem existia isso. Vale dizer que, o tamanho dos poemas antigos eram consideráveis! A Ilíada, por exemplo, conta com cerca de 15.693 versos e a Odisseia em torno de 12.109 versos. O mesmo se pode dizer da Eneida, de Virgílio com seus cantos, ou da Metamorfose, de Ovídio. O Hino às Musas, da Teogonia de Hesíodo, compõe-se, apenas, de 115 versos!

“Possuído” pelas Musas, filhas de Mnemosine (memória) com Zeus, o poeta conseguia transmitir, com rigor, a força da poesia. As Musas o socorriam e falavam por sua boca, contando, apenas, com a ajuda da mãe, ou seja, da memória. Os cantos dos poetas produziam os encantos que moviam os mortais. Mas, as Musas às vezes, faziam silêncio diante de alguma lembrança amarga. O silêncio, nesse caso, sepultava as amarguras no vale do esquecimento.

A palavra do aedo (poeta cantor) costumava valer mais que a palavra do rei (basileu). Somente através deles as Musas poderiam espantar os monstros do “inconsciente coletivo” de um povo, quando esta expressão nem sonhava em existir. Hoje, depois de trinta séculos que nos separam de Hesíodo, acho que as coisa mudaram bastante. Temos monstros demais e poesia de menos!

A monstruosidade da guerra, infelizmente, está mais viva do que nunca!  Diante de monstruosidades desse tipo pagamos o preço do silêncio poético. A poesia curativa do aedo parece engolida por esse   "monstro que é grande e pisa forte toda a pobre inocência dessa gente...”  Assim, a deusa Memória deixou de ser cultuada e as musas perderam a função para a grafia. Perdemos a noção de encantos e de mistérios. Sobram textos frios, mas faltam-nos a poesia quente, que brota, fervendo, dos porões da memória. A poesia recitada de cor (coração) tem força e é preciso acreditar nisso. O poeta é o servidor da beleza, mesmo quando essa se lhe revela à noite embrulhada de escuridão. Servir à beleza deve ser sua meta e seu propósito. Safos, uma poetisa grega, dizia em seu tempo que, “servir à beleza deveria ser a missão do poeta e, sendo assim, não existe outra função de tamanha nobreza”.  

Alguém já disse que somos um pais sem memória o que não é de todo mentira. O que restou-nos da cultura de tantos povos originários que habitaram esse pais antes da chegada do europeu? Para onde foram as línguas que eram faladas aqui, para onde foram suas músicas e suas poesias? Esse “apagão” da memória, muitas vezes, foi proposital. Onde foram parar os arquivos da escravidão negra ou mesmo da ditadura militar?  Às vezes, é muito conveniente para o poder apagar a memória de um povo, pois a memória pode gerar resistência.

O resgate da memória, enquanto possível, é muito importante às novas gerações. Temo que a “sociedade da informação” e do celular, faça um apagão ainda maior na memória coletiva de nosso povo.  Precisamos voltar a ouvir e continuar ouvindo o canto das musas, caso contrário, morreremos de tédio e tristeza. Sem cultivar a memória, no entanto, as musas ficam órfãs e incapazes de inspirar os poetas.

Imagem: Gerada a partir de IA. 



Um comentário:

  1. Ao ler o texto, digo que coincidiu com o que tenho pensado.
    Precisamos de mais poesia para amenizar as rudezas da vida!
    Escrever poesia é sensibilidade, e em muitos momentos uma conexão com nosso lado Divino. Acredito que as musas fonte de inspiração, pode sim estar em falta, mas questiono; Será que o que tem dificultado é este imediatismo da tecnologia? As mentes e corações deixam de se manifestarem, não registrando suas emoções no papel, para que se imortalize os sentimentos. Concordo, estamos vivendo um silêncio poético.
    Se questionei o tempo gasto na tecnologia e não na escrita, digo que estamos também sintonizando pouco com nossas belas e pura emoções.

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