Mística

Fui convidado pelas catequistas para falar sobre espiritualidade. O tema é, extremamente, fascinante e desafiador para alguém como eu, qu...

Fui convidado pelas catequistas para falar sobre espiritualidade. O tema é, extremamente, fascinante e desafiador para alguém como eu, que tem uma vida cheia de compromissos. Esse excesso de atividades me faz identificar-me mais com Marta do que com Maria. Mas, dada a proposta, então fui à cata de algo que pudesse me ajudar. Aproveitei a ocasião para valorizar o padroeiro de uma das Comunidades de minha paróquia, ou seja, a Comunidade São João da Cruz, no Bairro Cecília Meirelles. Comecei a ler o Cântico Espiritual e o que encontrei foi apenas a ponta de um grande iceberg. O que pude apreciar foi nada em vista das possibilidades do texto.

A primeira redação, do Cântico Espiritual foi o primeiro texto escrito por São João da Cruz. Parte dele foi escrito quando o santo esteve preso em Toledo, na Espanha. O restante foi escrito em Granada entre 1582 a 1584. O escrito foi chamado por ele de “Ditos de amor em inteligência mística”.  Então nos deparamos com um grande desafio: - como traduzir em palavras os sentimentos profundos da alma no seu encontro com Deus? O próprio São João da Cruz escreveu uma segunda redação do texto. Talvez, em razão dessa dificuldade. A linguagem da mística se aproxima da linguagem do amor. Mas, qual seria a linguagem do amor? – Talvez, os sussurros ou gemidos!  Na carta aos Romanos (8,26) São Paulo diz que não sabemos o que pedir a Deus. Por isso, o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. Vivendo no seio da Trindade, o Espírito é puro amor.

A linguagem dos namorados só faz sentido para eles que estão dentro de uma relação de amor. Para ilustrar isso, vou contar-lhe um fato real: - Tenho quatro irmãs. Quando jovem cada uma recebia o namorado em um dia da semana. A gente morava na roça e meu pai gostava de se deitar mais cedo. Isso, no entanto, nunca acontecia, pois ele não se deitava enquanto o namorado não ia embora. Na verdade, quase nunca se deitava cedo tendo em vista que, cada dia da semana, tinha que vigiar uma das filhas. Às vezes, o tempo estava chuvoso e molhava a lenha do fogão. Meu pai tinha que agüentar a fumaça nos olhos e a paciência dos namorados. Sempre reclamava que eles demoravam demais. Minhas irmãs não concordavam. Achavam que o tempo havia passado muito rápido. O que acontece é que a experiência do tempo era diferente nas duas situações. Uma estava namorando e se derretendo de amor. O outro estava vigiando o casal e agüentando a fumaça nos olhos... Coitado do meu pai!

O texto de São João da Cruz deve ser entendido como o texto de quem está profundamente mergulhado numa relação de amor. Ele se parece ao texto bíblico do Cântico dos Cânticos. O amado (Deus) é aquele que feriu o amante com apenas um dos seus olhares (Ct 4,9). Após esse ferimento o amante não sabe mais viver sem o amado. Ele geme por ele. O amado, no entanto, se esconde sempre, pois não pode ser totalmente, apreendido pelo amante:

Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o servo fugiste,
Havendo-me ferido;
Saí, por ti clamando, e era já ido...

O segundo verso do Cântico Espiritual nos mostra a angústia da alma humana que experimentou o amor de Deus e agora não sabe mais viver sem esse amor:

Pastores que subirdes
Além, pelas malhadas, ao outeiro,
Se, porventura, virdes
Aquele a quem mais quero, 
Dizei-lhe que adoeço, peno, e morro.

Com base em apenas esses dois versos do Cântico Espiritual falei para as catequistas sobre a importância da mística na catequese e na vida. Ela é como o fio que liga as contas de um colar. As variadas contas do colar são as múltiplas experiências que marcam nossa vida. O que une  e dá sentido a todas essas experiências é o fio da mística e da espiritualidade.  Nesse caso, não precisamos deixar de ser como Marta. Marta continua trabalhando e fazendo uma porção de coisas. Mas, tudo o que ela faz está unida por esse fio da espiritualidade.  Sem a espiritualidade nada faz sentido. Por isso no terceiro verso o santo nos diz:

Buscando meus amores,
Irei por estes montes e ribeiras;
Não colherei as flores,
Nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras.

As flores, os fortes e tudo mais, só fazem sentido depois do encontro com o amado. Por mais que elas sejam encantadoras e por mais que as feras sejam perigosas, sem o amado nada tem graça ou sentido. Dessa maneira nossa catequese ou qualquer outra atividade ou ministério, só faz sentido depois desse encontro amoroso com Deus. A Igreja não é uma ONG (Organização não governamental) ou um sindicato. O catequista não é um agente social ou promotor de bem estar. É um cristão mergulhado em Deus e por isso, deseja que outros também façam a experiência do Amado que é, infinitamente, misericordioso e apaixonado pelo ser humano que Ele criou.

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