A bisavó das cerâmicas modernas
Ninguém podia cortar o Pau Terra. Apesar de bonito e cheio de desenhos nas cascas ele servia pouco para o fogão à lenha. A “joia da coroa,” ...

Ninguém podia cortar o Pau Terra. Apesar de bonito e cheio de desenhos nas cascas ele servia pouco para o fogão à lenha. A “joia da coroa,” para isso, era a Pindaíba ou a Folha Miúda. Até para cortá-las era mais fácil. O Pau Terra não parecia coisa de Deus, pois, como poderia ter se entortado tanto, mesmo sem causa aparente para justificar aquela suposta deficiência? Acho que as árvores do cerrado são corcundas só para apanhar maior quantidade de água das chuvas. Aquilo acaba sendo um truque da natureza para enganar o céu. E por serem cascudas tinham as peles protegidas das queimadas, tão comuns, naquele tempo. A casca grossa funcionava como uma blusa a proteger as partes mais sensíveis no corpo das árvores. O Pau terra é o nosso “Sobreiro” tropical.
O terror de algumas árvores era o tempo das caieiras. A caieira foi a bisavô dos modernos fornos para queimar tijolos nas cerâmicas. Muito provavelmente, elas inauguraram a região de Antunes e Igaratinga onde as cerâmicas prevalecem e carregam a economia local. Mas, no "tempo do onça" só os mais abastados possuíam casas de tijolos queimados. Os “tijolos furados” apareceram bem mais tarde. Meu pai morreu sem confiar neles. Como poderiam suportar o peso de uma casa aqueles “falsos tijolos” que mais pareciam queijo suíço? Questionava meu pai! O queijo suíço fica por minha conta, pois o velho não tinha a menor ideia sobre o tal queijo e nem sabia da existência da Suíça. Mas, voltemos ao Pau Terra.
O Pau Terra e outras árvores com “defeito de caráter” só eram usadas para queima de tijolos nas caieiras. Nesse caso, eles ardiam a noite toda e nem poderiam contar com a proteção das cascas grossas. Normalmente, a queima durava alguns dias e o fogo não podia apagar. Aquilo era uma miniatura do inferno, se não fosse a festa que a turma acabava fazendo ao lado das caieiras para ajudar a passar as noites que, naquele tempo, eram mais longas e frias que as de hoje. A noite na roça começava às 18h e só terminava com o cantar do último galo na barra do dia. As caieiras ardiam noite e dia até que os tijolos assumissem a mesma cor das brasas. Na feitura delas, os tijolos crus, eram empilhados de tal maneira que o calor pudesse circular entre eles. No meio, deixava-se uma grande abertura como se fosse um forno. Ali o fogo ardia e nem mesmo o Pau Terra suportava tal quentura. Do lado de fora a turma também se aquecia com a animação de um sanfoneiro e "caldo de cana destilado", palavra chique para manguaça.
A olaria era uma espécie de empreendimento rural que demandava mão de obra qualificada e muitos braços para movimentar o negócio. O barro era amassado com os pés mesmo! Essa era a parte que eu mais gostava. A gente fazia uma espécie de baile sem música. O Brejão mais parecia uma cidade, pois havia sempre uma grande movimentação de gente. Um sujeito moreno e catarrento, cujo nome não me lembro, que era o técnico. Tudo dependia dele. Só ele sabia o ponto do barro (hoje chamado de argila!) e o ponto da temperatura para parar a queima dos tijolos. Ao final da queima eles se mudavam de cor. O que antes era grafite, tornava-se claro ou amarelado tipo gema de ovo. Para atestar a qualidade do material o moreno catarrento dava um peteleco no tijolo e ele retinia como um sininho. Aí ele sorria com a boca sem dentes justificando sua fama de grande "profissional".
A gente queimava os tijolos para os outros, pois nossa casa era de adobe, uma versão pobre do tijolo de grife. O adobe passava pelo mesmo processo de feitura só não era queimado. Além disso, exigia outros ingredientes em sua feitura tipo capim e estrume de vacas. A fôrma era maior e, por isso, o adobe era mais gordinho que o tijolo e já saia da forma com uma espécie de encaixe natural. Mas, ele passou a ser usado por nós, só quando ficamos mais ricos, ou menos pobres, pois antes dele, tudo era feito mesmo de pau a pique. Passamos a usar o adobe quando melhorou o nosso IDH - Índice de Desenvolvimento Humano (outra palavra chique para pobreza!). Meu pai era um bom "engenheiro" e cada vez que vinha um novo filho aumentava um pouco nossa cafua.
Aumentar a casa não era coisa de outro mundo considerando que tudo era feito com pau a pique e coberto de Sapé. A gente cortava as ripas de Aricancas e amarrava-as com imbira de Pindaíbas ou Cipós de São João, na posição horizontal, presas a dois esteios, normalmente, de Sucupira. Entre elas, ficavam presos, na vertical, alguns paus mais grossos de Pindaíba. Após amassar o barro, duas pessoas o arremessavam, aos poucos, simultaneamente, e na mesma direção, de tal maneira, que a parede ia subindo devagar. Era um luxo! De vez em quando, alguém se atrasava no arremesso do barro. Nesse caso, o barro arremessado do outro lado caia direto na cara do freguês. Isso também fazia parte do show! A cobertura acontecia no final do processo. Meu pai era especialista nisso e sabia amarar os feixes de Sapé da forma correta para não dar goteiras. Enquanto ia ajeitando os capins mastigava o nada como se mascasse chiclete... Depois de pronta a casa se transformava num verdadeiro palácio! Nada melhor do que morar numa casa nova com cheiro de natureza. Poucas crianças de hoje tem a riqueza que tive em minha infância!
Foto em destaque: Pintura feita por mim em 1987 - Só moramos nessa casa depois de melhorar significativamente o nosso "IDH"...
Sua memória é muito boa. Sua descrição é carregada de detalhes. Muitas saudades desta casa. Já fiz o almoço na fornalha da cozinha, provavelmente também feito seu seu querido Pai!
ResponderExcluirAmei o texto relatando parte de sua infância, e tanto quanto o vídeo final😊
ResponderExcluirConheci um senhor que não vem ao caso o nome, mas o apelido era "Toim Riquim". Trabalhou em carvoeiras a vida inteira. Sem leitura e muito menos etiqueta. Com uma cultura e intelectualidade que me impressionava. Num sábado à tarde, o dono do eucalipto, chegou perto da bateria de fornos, à cavalo. Meu irmão mais novo que eu, e eu, estávamos a ouvir suas belas estórias. Quando o patrão, se debruçou sobre o arreio e disse. Já me enriquei de dinheiro hoje, agora vou me enricar de sabedoria. Hoje eu percebo que não precisamos de muita coisa pra viver. Basta ter sonhos simples e aproveitar cada segundo.
ResponderExcluirQue narrativa rica e cheia de alma! Há uma beleza profunda nessa simplicidade que não é simples, é ancestral, feita de barro, cipó e saber. Cada parágrafo é um tijolo de memória, moldado por mãos que conhecem o peso da enxada e a leveza de um sorriso desdentado. Encanta ver como Padre Gabriel transforma dureza em poesia: a casca grossa das árvores, o barro pisado com os pés, o adobe feito com capim e estrume, tudo vira arte, afeto e resistência.
ResponderExcluirMas também dói. Porque por trás da festa ao lado da caieira e da "cafua" feita com o nascimento de cada filho, há um povo marcado pela falta: falta de recursos, de descanso, de justiça. O texto não esconde isso, pelo contrário, nos mostra como o povo pobre é obrigado a tirar beleza do que sobra, e força de onde não tem. É uma escrita que dá nó na garganta e aquece o peito. Como um feixe de Sapé bem amarrado: sustenta, protege e ainda deixa entrar um pouco de sol.
Adorei o texto, uma aula de arquitetura.Outra,qualidade do padre é que,além de escritor é também é pintor.Pessoa de multi talentos.
ResponderExcluirTexto excepcional. Voltei à infância, quando eu e meu irmão brincávamos de fazer tijolos, mas que eram de tamanho real. Depois fazíamos construções com eles.
ResponderExcluirA casa da pintura também me faz viajar longe.
Mais um texto muito interessante e resultado da boa memória do Senhor Padre Gabriel, descreveu o material de construção fornecido pela mãe natureza, que depois de trabalhado torna-se o porto seguro da família, ou seja um lar.
ResponderExcluirSinto muito não ver nada romântico na queima de árvores, para resultar em bons tijolos, porque para mim não deveria nunca existir olarias. infelizmente ainda existem fábricas e aí em Pará de Minas é um exemplo, que tem funcionamento com uso de carvão. É sim famosa as cerâmicas, telhas em qualidade, mas para mim um atraso ter que cortar as árvores para oferecer a materia prima, ou seja o carvão.
Confesso que fico com o coração apertado ao ver carretas abarrotadas para abastecer os fornos.
"Assim como a sabedoria é o grande prêmio da velhice humana, a árvore quanto mais velha, torna-se mais bela".
Termino pedindo desculpas por abrir o coração na minha defesa das árvores . Não quero ser deselegante em meu comentário porque a construção do texto do Senhor foi como sempre muito agradável de se ler.
Tenho conhecimento do eucalipto usado para transformar em carvão, mas sabemos também que seu plantio empobrece a terra.
ResponderExcluirComo diz o Pe Jair ,,,Sua memória Pe Gabriel é muito boa, tudo muito bem detalhado. Que texto mais gostoso de ler . Parabéns pela pintura, Amei o quadro 👏
ResponderExcluirQue quadro lindo,q texto legal de ler, ...Não tem nada melhor q morar numa casa com cheiro d natureza, Cheia de histórias.... Parabéns pelo texto...
ResponderExcluirQue saudade, esse quadro faz parte da minha história, nostalgia pura, e o texto reflete muita aprendizado,..
ResponderExcluirJá dormi em casas de pau a pique e cobertas com Sapé, este conto me traz muitas recordações, obrigado padre .
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