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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Da lembrança do que fui ao pó que me transformei

 


Por alguma razão resolvi partir e sai, perambulando, ao entardecer de um dia qualquer. Tomei a estrada sentindo a suavidade do clima em mais um dia agonizante. Levava uma capa e nem sabia porquê. Estava com plena disposição e, por isso, andei “sem lenço e sem documento”. Sentia-me leve de preocupações enquanto caminhava, com passos firmes, numa determinada direção. Com o avançar da caminhada percebi que estava só, e, apesar disso, sentia muita presença, embora não conseguisse explicar aquele sentimento. A estrada deserta fazia-me pensar que, talvez, estivesse interditada por algum acidente um pouco mais longe.

O tempo, gradativamente, foi se tornando ameaçador com a aproximação da noite. O que seria motivo para minhas preocupações de outrora, agora, em nada me incomodava. Deixei a estrada e tomei uma trilha beirando um capão de mato que crescia ao pé de uma pequena elevação. Foi então, que escureceu de vez e uma chuva caiu ameaçadora.  Naquele instante, não encontrei mais minha capa. A chuva caiu, torrencialmente, e dela não tive medo. Pelo contrário, sentia-me invadido por um misterioso contentamento, um misto de alegria e satisfação.  

Naquela restinga de mato, envolto em trevas, sob a chuva e a ventania, não tive medo algum. Algo me dizia que eu não estava só. Para piorar as coisas divisei uma cerca de arame farpado diante de mim. Aquela cerca foi um novo obstáculo em meu caminho. Ela se estendia sob o leito de um ribeirão o qual deveria atravessar. E agora, meu Deus? – Perguntei a mim mesmo. Como fazer? Procurei, no escuro, uma passagem mais fácil onde pudesse atravessar a cerca sem cair-me no ribeirão.  Subi mais um pouco e atravessei. Nunca me senti com tanta paz de espírito. Nada me atormentava embora o meio parecesse dizer o contrário.

Como um passe de mágica o tempo mudou-se, de repente, e consegui me localizar no espaço vislumbrando as ruinas de uma casa, que me fora conhecida, bem perto de mim. Aquela fora a casa onde cresci. Nas proximidades dela, notei, à distância, envolto em penumbra, o perfil de uma pessoa conhecida. Ao que parece, ela não me viu e foi-se embora, antes que nos encontrássemos. Ainda bem, pois, eu mesmo não era mais uma pessoa e sim um espectro do que fui.  

A casa demolida, não mais que um monturo de tijolo e pedras, agora refletia, de forma pálida, os raios do sol. Talvez, o dia amanhecesse. Talvez... Antes, porém, vi à distância, a silhueta de outra pessoa que também me fora conhecida e que parecia me aguardar. Pelo visto, ela não me viu e, como passe de mágica, simplesmente, desapareceu.

Adentrei-me nas ruinas daquela casa. Tinha fome? Não! Tinha sono? Também não! Percebi vindo ao meu encontro, apenas,  um cãozinho escadeirado que se alegrou com minha presença como se fossemos velhos amigos.  Eu também me alegrei com a presença dele. E ali, naquele lugar insólito, dei bom dia aquilo que um dia fora uma casa e, juntamente, com o cãozinho, me impregnei naquele lugar. Tornei-me pó e continuo feliz nessa condição. Hoje, não temo as noites, as chuvas, o frio e nem os fantasmas de antigamente. Que o vento me carregue, não importo! Qualquer lugar é o meu lugar. Não me lembro mais do que fui e com isso não me incomodo. Fui transformado em pó, um pó que a chuva pode banhar, o vento carregar e o sol pode iluminar quando quiser...

Foto: Arquivo pessoal

4 comentários:

  1. Não consegui ler, tive medo e parei. Retomei a leitura e .....maravilhosa crônica.

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  2. Construção de um texto bem descritivo de detalhes e emoções, e que nos prende do começo ao fim. Deixa ao leitor à sua conclusão de entendimento, se é que precisa, já que para mim o forte da escrita foi os sentimentos sentidos.

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  3. Muito interessante seu texto . Parece algo muito real e acontece sempre em lugares do meio rural . Parabéns pelo texto

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  4. Amei a crônica e também matar a saudade de Eliz Regina.

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