Antiguidades
Sou herdeiro legítimo de um tempo que não existe mais. Por isso me dou ao direito de usar minha língua de infância sem ter que expl...

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Sou herdeiro legítimo de um tempo que não existe mais. Por isso me dou ao direito de usar minha língua de infância sem ter que explicar muito.
Minhas irmãs polvilhavam o rosto com “cashmere bouquet” (pronunciava: cachimir buquê) e achavam o máximo. Era como ter garantia de arrumar casamento.
Pela manhã comiam angu e fubá suado. À noite posavam de rainhas! Todas conseguiram maridos. A coisa funcionou.
Fui curado de cobreiro, espinhela caída e vento virado. Às vezes, desconfio que a última cura não ficou bem feita. De vez em quando, parece que ainda sinto o “ventre revirado”.
Já capinei arrozal com água até os joelhos. Era bonito quebrar o espelho de lodo vermelho com a lâmina fina da enxada. O céu se partia em pedaços!
Bebi muita água na folha de inhame como quem se alimenta de deslizantes cristais.
A primeira vez que andei de jipe pensei que fosse o mundo que girava sob meus olhos. Tive sensações de tontura. Parecia o fim do mundo! E olhe que nem estava na boléia.
Tive com o rádio uma relação de amor. Rádio é individual. Era como carregar o mundo inteiro no bolso. A televisão era grande e podia dar choque! Minha mãe cobria os espelhos quando relampeava. Os espelhos atraiam os raios!
No pátio da Santa Cruz se enterravam os inocentes. Deus me livre de quaresma sem batismo das crianças. O lobisomem não perdoava aquela casa. Era coisa de mistérios. Soube de um cruzeiro que foi partido três vezes por raio. Ninguém dizia que o cruzeiro era azarado. Fazia-se absoluto silêncio e, reconstruía-se a cruz.
Minha mãe tinha um forno feito com pedaços de cupinzeiro. Cupim era bom para guardar o calor, dizia ela enquanto amassava os biscoitos. Tudo era bem pouco, mas acabava sendo uma grande festa!
“Misto” já foi o outro nome do “trem de ferro”, o primo pobre do metrô.
Andar de bonde era simplesmente andar de lado. Podia ser o começo de um namoro ou simplesmente uma grande safadeza!
“Cristel” (clister) era o apelido dos chatos. Mas, tinha que ser chato, de verdade, para merecer esse título!
“Pelego” era forro de arreio e mancebo um simples suporte da lamparina, uma prima pobre da luz elétrica.
A lâmpada elétrica foi meu objeto de adoração, mesmo quando queimada!
Agora me diga se não tenho mil razões para ser feliz?
Convivi com a magia do lodo, sofri com espinhela caída, comi biscoito assado em cupinzeiro e bebi água na folha do inhame. Com tudo isso no lombo como não sofrer da ideia, ou querer ser poeta? Assinalei para minha vida a última opção.