Confissão de culpa

Pobre a gente não era. O que havia era falta de recursos. E a falta de recursos era geral. Quase todos partilhavam da mesa sorte que,...


Pobre a gente não era. O que havia era falta de recursos. E a falta de recursos era geral. Quase todos partilhavam da mesa sorte que, geralmente, sorria prá poucos, naquele tempo. Ser sortudo era ter comida no prato, camisa de tergal, rapadura no armário uma lingüiça no varal respirando a fumaça do fogão à lenha. Isso é que era vida! O resto? - Ah, o resto, ninguém se importava muito. Sapato no pé, bule esmaltado, um rádio de pilha, bicicleta monark já seria um luxo quase desnecessário. A gente brincava todas as tardes! A meninada se juntava subia nas árvores, empurrava arco de barril, puxava um couro transportando outras crianças, fazia gangorra e aproveitava de mil modalidades  de brinquedos!

Todo menino, naquele tempo, portava um estilingue. Alguns exibiam a qualidade de suas armas. Usando frutos de lobos matavam passarinhos sem a menor preocupação ecológica. Mas, a poderosa arma não era só para matar. Apostávamos quem seria o melhor de mira. Punha uma lombeira em cima de um toco qualquer, marcava-se a distância regulamentar e os competidores tinham que acertar a mira. Às vezes, algum animal distraído também levava...

Um estilingue de qualidade era feito de pau de goiabeira e borracha de câmara de ar de bicicleta. Esse era um luxo que arrancava suspiro na galera... Um dia, apareceu alguém, com um estilingue feito com “garrotes”, umas mangueirinhas usadas para medir pressão ou tirar sangue das veias. Aquilo foi uma coisa do outro mundo! Valia mais do que uma boiada inteira. Por ser coisa muito  rara poucos possuíam. Eu pensava com meus botões: - Com um desses na mão não sobraria uma única caixa de marimbondos no meu caminho! Jurei que ira furar todas elas caso tivesse uma “máquina” daquelas... Deus ouviu minhas preces. Certo dia, quando eu menos esperava,  ganhei aquela raridade.

Com aquele presente eu me tornei  outra pessoa. Comecei a andar armado! À tiracolo um embornal cheio de frutas de lobos, ostentando aquele luxo pendurado ao pescoço iniciei minha cruzada anti-marimbondos. Ah! Foi uma caçada! Havia algum tempo eu estava “seco” naquela “caixona” de marimbondo-estrela, pendurada no bambuzal... Bem de manhã, iniciei a artilharia. Para fazer arte eu costumava agir sozinho. Isso me preservava de alguma possível denúncia junto à minha mãe que me considerava, “injustamente”, custoso. Assentei-me atrás da moita de canas e comecei logo o ataque. Como era bom! A marimbondada ficou maluca! Voava e revoava caçando o responsável por tamanha destruição. Não tive dó nem piedade. Afinal, estava prestando um grande serviço à humanidade... Naquela noite dormi em paz com meu estilingue ao lado.

No outro dia, bem cedo, apareceu um vizinho cujo nome ainda preservo por razões de segurança, reclamando de um ataque infernal de marimbondos. Isso, segundo ele, aconteceu quando foi apartar as vacas e passou com a bezerrada sob o bambuzal. Ainda exibia as provas do ataque, pois trazia inchaço na mão direita. Antes de terminar seu relato, concluiu: - Foi ataque de algum passarinho que queria comer os marimbondos. Ao ouvir isso, respirei aliviado. Pelo menos de uma surra estarei livre, pensei. Minha mãe não era boba. Apenas me olhou com o rabo do olho. Como não tivesse prova do crime fui absolvido sem julgamento.
Mas, devo confessar que aquele olhar de condenação até hoje me dói...

Imagem de Aamir Mohd Khan por Pixabay 

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