O Santo de cabeça para baixo
Em outras épocas quando a realidade era mais sacralizada que hoje, as festas religiosas marcavam o ritmo do tempo. Nesse caso, as fe...
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Em outras épocas quando a
realidade era mais sacralizada que hoje, as festas religiosas marcavam o ritmo
do tempo. Nesse caso, as festas de junho eram tão importantes quanto às de
final de ano. Em junho o calendário agrícola fechava um ciclo e abria outro.
Hoje o clima está mudado e parece que tudo está diferente. A gente planta e não
colhe mais com facilidade. Em meu tempo de criança as laranjeiras produziam,
sem defensivos, e o mesmo acontecia com os mamoeiros. Os pés de laranja
cresciam dez metros ou mais! Em meados de maio e junho ficavam pesados de
tantos frutos. A meninada subia nas laranjeiras e só desciam de lá com a pança
cheia.
De alguma maneira, os santos de
junho pareciam proteger nossas colheitas. Naquele tempo havia muitas colheitas!
A gente não comprava arroz descascado no saquinho... Colhíamos o arroz, o
feijão, milho, abóboras, amendoim... Em junho as roças de milho estavam secas e
a fartura era coisa certa. Era tempo de arrancar as mandiocas, fazer polvilho e farinha. Nem de longe, tínhamos
os confortos de hoje, mas havia grande fartura de alimentos, livres de
defensivos. Ô tempo bom!
Nas festas de junho um detalhe me
chamava a atenção: Os mastros! Os mastros eram paus medindo cerca de seis
metros. Eram cortados, antecipadamente, secados e, cuidadosamente, enfeitados
com papeis coloridos. Na extremidade mais fina, sustentavam as bandeiras dos
santos padroeiros erguidas durante as festas. O mastro era um elemento de
ligação da terra com o céu. De sua bandeira enfeitada de fitas o santo protegia
seus devotos e garantia boas colheitas no próximo ano. Rezar diante do mastro,
era quase um dever, de que contava com a proteção dos santos para a lavoura. E
como eles nos protegiam!
Meu pai, normalmente, fazia o
mastro com um bambu bem reto e comprido. Na extremidade deixava as varetas pontiagudas
e, nelas a gente espetava limões capetas. Por medo, ou respeito ao sagrado, alguém
sempre nos corrigia, quando pronunciávamos o nome da fruta. Amarrávamos ao mastro, espigas de milho, descascadas pelas metades, deixando os grãos à
mostra. Prendíamos velas acesas, nas pontas do mesmo e, após a reza do terço ele
era, solenemente, suspenso do chão com muitas palmas, fogos e cantorias. Ao
final do mês, havia pelo menos três bandeiras: Santo Antônio, São João e São
Pedro. Os vizinhos combinavam para que cada um fizesse uma festa e assim,
garantiam a presença de público sem dividir a comunidade.
Após levantar o mastro a rodada
de biscoitos era certeira. Eles vinham acompanhados de bolos, broas e doces.
Ninguém se preocupava muito com balança e, naquele tempo, não havia colesterol... A meninada torcia para
que a reza do terço acabasse logo. Mas, isso não acontecia assim. Quando a
gente pensava que estava acabando a dona que conduzia a reza puxava uma
ladainha em latim. Não entendíamos nada, mas, respondíamos assim mesmo. Bastava
dizer “ora-pro-nóbis...”. Por vezes, cheguei a pensar que aquela expressão
invocasse uma verdura, babenta, também chamada Ora-pro-nóbis.
Na hora de levantar o mastro
alguma coisa sempre dava errada. O buraco da bandeira não cabia a ponta do
mastro; alguém havia se esquecido de furar o buraco no chão; não providenciaram
os arames para prender a bandeira... A gente já ficava esperando para ver o
nervosismo do dono da casa... O tempo passou, mas esses imprevistos ainda acontecem
quando se levanta os mastros. Faz alguns anos algo assim aconteceu comigo durante uma festa do Congado. Estávamos
encerrando a festa em Pará de Minas. Na hora de levantar o mastro de São
Benedito caiu uma chuva que não estava prevista. Os congadeiros ficaram ensopados em poucos
minutos. Mas, insistiam em tocar os tambores, já desafinados, por causa da
chuva. Na hora de levantar a bandeira não dava para observar muita coisa. A
noite estava escura e a chuva não dava trégua. Quando, finalmente, tudo parecia
estar pronto alguém gritou do meio do povo: - O santo está de cabeça para
baixo! Não deu outra. Tivemos que fazer tudo de novo.
Naquele dia São Benedito caprichou
conosco!
Deu-nos, um verdadeiro banho de
graças...
Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal
Também tenho saudades das fogueiras, da época em que éramos mais fervorosos na fé. Como sempre o senhor nos remetendo a um passado tão belíssimo. Parabéns.
ResponderExcluirBela reflexão, tudo bem lembrado. Traz boas recordações das antigas fogueiras nas roças. Parabéns... !
ResponderExcluirMeu tempo de criança e adolescência foi retratado neste belo texto. Todos os anos era rezado o terço de São João com todo o aparato descrito no texto. Porém, meus irmãos, meus pais, alguns vizinhos mais chegados e eu trabalhávamos no preparo de toda a festa sob a supervisão de minha mãe, perfeccionista à toda prova. Pipocas estouradas e ensacadas em papel de pão, biscoitos vários, bolos e a inesquecível fatia de amendoim...
ResponderExcluirExatamente igual: reza interminável pra se ir para o quintal, levantar o mastro , acender a fogueira, estourar os traques nos pés dos adultos que dançavam ao som de sanfona e violão na sala de visitas, transformada em imenso salão enfeitado com bandeirinhas coloridas... É tanta saudade das festas, da meninada, dos meus pais...
Bela reflexão que nos leva ao passado. Bom tempo. Saudável e muito religioso eram estas festas
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