A égua cor de canela
Só mais tarde compreendi que “alazâ” queria dizer cor de canela. Até então, pensava tratar-se de um nome próprio, ou seja, o nome da égua ...
Só mais tarde compreendi que “alazâ” queria dizer cor de
canela. Até então, pensava tratar-se de um nome próprio, ou seja, o nome da
égua de nossa família. Alazã era quase todo o patrimônio que tínhamos, além
duns cinco cachorros e duas espingardas que meu pai tratava como se fossem joias.
Uma delas era cartucheira de dois canos, um luxo só, para quem não tinha onde
cair morto! As duas “ferramentas” ficavam dependuradas num cabide atrás da
porta do quarto perto da capanga com os sortimentos (acessórios).
De vez em quando recebíamos em nossa casa algum amigo de meu
pai que também era caçador. Aquele assunto de bichos e caçadas era ruim demais
para nossos ouvidos de criança. Meu pai se gabava de ter matado algumas onças,
lobos e bichos que pegavam as galinhas. Naquele tempo nada disso era proibido e
nem politicamente incorreto... Em todo o caso, era melhor que nós, em vez dos
bichos, comêssemos as galinhas. Parte da caça também servia para matar a nossa
fome. Naquele tempo, existiam codornas, juritis e nhambus... Para quem nada
tinha no prato aquilo acabava dando um ensopado.
Alazã fazia parte da família, mas era ruim de cela que doía!
Para mim sobrava sempre a garupa e algumas varadas. Para despertar a lerdeza da
égua minha irmã usava uma vara de Maria Preta e em vez de acertar o lombo do
animal acertava meus dedos do pé, pois naquele tempo, ninguém usava sapatos. De
sorte que, eu dividia sempre com o animal, a dor das varadas e após cada viagem,
chegava em casa com os pés doloridos. As distâncias pareciam enormes para meu
corpo pequeno. O sol me castigava e a fome também. Indiferentes ao nosso fado
as cigarras serrilhavam a tarde enquanto Alazã trotava sem jeito pelos trilhos
poeirentos.
Minha irmã, certo dia, perdeu o “ouvido” da cartucheira de
meu pai e ele perdeu as estribeiras com ela. Só não a deserdou por isso, porque
não havia mesmo previsão de herança. Mas, faltou soprar o chão da estrada para
encontrar a peça rara. A partir de então, a cartucheira de dois canos passou a
funcionar com um cano só. Envergonhado em possuir uma arma mutilada meu pai
nunca mais a exibiu aos amigos conforme fazia antes. Aquilo foi um vexame na
vida dele e uma grande ameaça para minha irmã. Quem acabou se apossando da
cartucheira foi mamãe que, muitas vezes, a usou para matar algumas cobras que
apareciam, furtivamente, no terreiro. Ela era boa de mira, mas só apontava a
espingarda para as cobras e algum gambá desprevenido que vinha roubar os ovos das
galinhas.
Certo dia, quando a gente menos esperava Alazã deu cria.
Ninguém havia notado nada, nem mesmo papai que era especialista em
generalidades: Fazia castração nos animais, retirava espinhos de ouriços nos
cachorros e amochava as vacas... Tudo sem anestesia é claro! A gritaria também
fazia parte de nosso cotidiano. O potro que nasceu era bonito, mas infelizmente,
seu pai era desconhecido. Alazã era bem comportada e embora estivesse acima de
qualquer suspeita ninguém poderia negar que tivera um enlace amoroso às
escondidas. Mas meu pai era homem de decisão e já que o fato estava consumado
de nada adiantaria chorar o leite derramado. Agora teria que andar a pé durante
o resguardo do animal. Com o passar do tempo o segredo foi desvendado. O potro trouxe
uma mancha branca na testa semelhante ao cavalo do cigano que andou passeando por
aquelas bandas meses atrás. Ninguém viu nada, mas é certo que ele andou
crescendo o olho pro lado da égua. Aquele era um cavalo carente. Dava para
perceber isso nos olhos dele, constantemente, lacrimejantes. Agora o resultado
estava ali diante de todos. Os ciganos
se foram mas deixaram uma boa lembrança para trás. Quanto à Alazã, acho que
aprendeu até a ler a sorte dos outros bichos...
Imagem de Rebecca Schönbrodt-Rühl por Pixabay
Égua se ler a mão,vai ficar rica. Kkkk. Boas lembranças
ResponderExcluirAlém da Alazã ter se tornado mãe solteira, só faltou o filho dela, para não fugir à regra, ter colocado ouro nos dentes...
ResponderExcluirLendo histórias assim me fazem viajar em lembranças da minha infância.....quantas saudades do meu tempo de criança.... obrigado me fez bem.
ResponderExcluir🙌🙌
ResponderExcluirLeio, imagino a cena e me vejo rindo sozinha dos ricos detalhes que lembram também a minha infância. muito bom!!!!
ResponderExcluirQue interessante, foi lendo esse texto que também descobri o significado de alazã. A sua mãe era uma mulher corajosa, nem mesmo com uma arma acho que não tenho coragem de matar uma cobra. Ótimas recordações padre! Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirNossa, que lembranças maravilhosas, mesmo com todas as dificuldade da época, vocês era felizes, lembrei muito da roça dos meus avós materno. Que saudade, mesmo sendo criança, via lida dura dos meus tios. Que comida gostosa minha avó fazia, era simples, mas feito com muito amor. Muito obrigada por compartilhar estas experiências.
ResponderExcluirMaravilhosa
ResponderExcluirMuito belo
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