Na hora “H” o homem sempre dorme

 

O ser humano é mesmo uma criatura difícil de entender. A gente sonha alto demais, mas quase sempre tropeça nas pequenas coisas. Além do mais, nossa condição humana com sua fragilidade não nos permite realizar algumas de nossas aspirações. A gente sonha com as estrelas mais não consegue nem subir numa escada... Para falar sobre isso poderemos recuar a Adão. O seu grande sonho era ter uma companheira que fosse semelhante a ele. Na hora de Deus criar essa companheira Adão estava dormindo e não deu fé de nada. Algo semelhante aconteceu a Abraão que dormiu bem na hora de celebrar um pacto com Deus (Gn 15,10). Os discípulos também dormiram na hora mais difícil de Jesus, durante sua agonia no jardim das Oliveiras. Isso somos nós com nossas fragilidades. Sonhamos em atravessar o oceano e nos afogamos numa gota d’água!

No Livro Grande Sertão Veredas, o Jagunço Riobaldo, fez um pacto com o mal para vencer o próprio mal, no caso, personificado no Hermógenes, outro personagem da história. Seu grande sonho era ver o fim da jagunçagem, e poder viver em paz, com Diadorim, o seu “amor de ouro”. O livro é uma coletânea das memórias de Riobaldo  formadas de pequenos relatos e situações vividas por ele na juventude. O ponto mais alto da narrativa é a luta entre Diadorim e Hermógenes. Você acredita que nessa hora Riobaldo teve um desmaio? Logo ele, que sonhou em beber o sangue do Hermógenes, nada viu da luta que teve como desfecho a morte de ambos os lutadores: Hermógenes e Diadorim, o seu grande amor. A vida toda ele sonhou em acabar com o Hermógenes, mas, apesar disso, a história teve um desfecho sem a sua participação.

A mitologia grega ao falar da relação entre Eros e Psiquê, também mostra uma trágica situação onde o amor escapou exatamente quando quiseram aprisioná-lo. A história é longa e não daria para contá-la aqui. Mas, em resumo é o seguinte:  Psiquê  foi invejada por Afrodite por causa de sua grande beleza. Em razão disso, a deusa lhe jurou vingança. Chamou Eros, o seu filho e pediu que fosse à terra e dificultasse o casamento para aquela bela jovem. Mas, o feitiço virou contra o feiticeiro, pois o próprio Eros se apaixonou por Psiquê ao ver sua extrema beleza. Depois de um tempo eles foram morar juntos num rico palácio, mas, a condição era que Psiquê nunca veria o marido. Coisa impossível a qualquer amante! Um dia, Psiquê, morta de curiosidade, acendeu uma vela para vê-lo dormindo. Ficou tão deslumbrada com a beleza daquele jovem que deixou pingar nele uma gota de vela derretida. Furioso ele acordou e saiu voando pela janela. Antes, porém, lhe disse: Vou-me embora porque você não confiou em mim. O amor não pode conviver com desconfianças...

Psiquê é a alma humana sedenta de um amor divino que possa saciá-la plenamente. Esse amor perfeito só Deus pode dar. Eros representa a divindade que se apaixonou por uma criatura mortal. Enquanto o clima de mistério envolvia os amantes o amor durou, mas quando a curiosidade e a desconfiança falaram mais alto ele acabou. O amor sempre envolve um clima de penumbra onde nunca dominamos completamente a situação. Psiquê quis iluminar o amor e nessa hora ele, simplesmente, desapareceu, pois o amor sempre envolve clima de mistérios, um claro-escuro onde a razão não prevalece. Alguns chegam mesmo a dizer que o amor é cego...

Falando agora do amor entre Deus às suas criaturas podemos dizer que ele nunca acontece do nada. É como se Deus nos enviasse uma centelha ou um pequeno aperitivo desse amor e isso despertasse em nós uma imensa vontade de desfrutar da festa inteira! Mas, quem somos nós diante da inteireza de Deus? Ferida pela seta desse amor não sabemos mais viver sem ele. Assim dizia São João da Cruz em seu Cântico Espiritual: Onde é que te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido? Como o cervo fugiste, Havendo‑me ferido; Saí, por ti clamando, e eras já ido.

Deus é o divino amante que se aproxima da alma humana a fere de amor deixando-a, com mais sede ainda. Só que a alma humana é pequena demais para corresponder a esse gesto de Deus. Ferida ela busca o amante por todos os lados para poder desfrutar ainda mais desse amor: Buscando meus amores, irei por estes montes e ribeiras; Não colherei as flores, nem temerei as feras, E passarei os fortes e fronteiras. Santo Agostinho dizia: Ainda assim, quer louvar-Te o homem, esta a parcela de Tua criação! Tu próprio o incitas para que sinta prazer em louvar-Te. Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti.

Como todos os seres mortais eu também costumo dormir na hora “H”. Só espero que Ele, essa “beleza tão nova e tão antiga” venha me dar a mão e me acordar. Espero ainda, que ele me conduza às verdes pastagens e me faça repousar. Espero em ti, Senhor...

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