Um simples peru

  O menino, no auge de sua inocência foi convidado a passear. O passeio tornou-se histórico em sua pequena história de vida. A viagem aconte...

 


O menino, no auge de sua inocência foi convidado a passear. O passeio tornou-se histórico em sua pequena história de vida. A viagem aconteceu de avião e, pelo visto, viajou acompanhado da família toda. Os pais do personagem principal conhecido apenas pela alcunha de “O Menino” deveriam ser engenheiros e acompanhavam o surgimento de uma grande cidade em um planalto do Brasil. Esse foi  um enredo criado pela imaginação de Guimarães Rosa no seu conto: As margens da Alegria, do livro Primeiras Estórias. Penso que Rosa seja um dos autores que melhor conseguiu  retratar o universo infantil. Quem leu “Campo Geral”, certamente, irá  concordar comigo.

Na história de hoje, um conto bastante curto, Guimarães Rosa retrata com grande realismo o que passa no coração de uma criança. Pelo visto, a história foi escrita pelo menino puro  que nunca morreu dentro do autor.  Assim como acontece para qualquer criança, um novo passeio é sempre motivo de descobertas e alegrias. A viagem de avião, então, nem  fale! Da janelinha, o menino podia ver o mundo movente lá embaixo de forma nunca antes observada.

Os objetos de interesse de uma criança nunca são os mesmos dos adultos. Enquanto os engenheiros acompanhavam os serviços de terraplenagem e se perdiam em cálculos diante do grande empreendimento o menino  contentava-se em contemplar coisas muito simples como um majestoso peru que “grugulejava” no terreiro. Diante do olhar curioso do menino nenhum detalhe da ave, um tanto quanto exótica, lhe passou despercebido:

“O peru imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras. E a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços. E ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul e preto – o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro glugo. O menino riu, com todo o coração. Mas, só bis-viu. Já o chamavam para o passeio...”

Depois de todo esse encantamento com o peru, que mais tarde foi parar na mesa do almoço, o menino não conseguiu esconder os seus desencantos e passou a refletir, `a seu modo, sobre a brevidade da vida:

Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever (rever o peru).

“Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E – onde? Só umas penas, restos, no chão. –‘Ué, se matou. Amanhã não é o dia –de anos- do doutor? ’  Tudo perdia a eternidade e a certeza. Num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam.  Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que Ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele. O peru – seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o buscavam: - ‘Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago...’”

Na cabecinha do Menino a morte do peru falou mais alto que o ronco dos tratores que derrubavam as árvores nos seus ofícios de destruição. Ele já não sabia mais o que fosse o certo ou errado. Sua desilusão disputava espaço com seu contentamento. O universo daquele Menino acaba sendo o universo de cada um de nós que vivemos um misto de encantamento e desilusões a vida toda. Oxalá não deixemos morrer a criança que um dia habitou em nós pois só assim, continuaremos a perceber, para além dos interesses materiais, as coisas simples da vida.

Imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/animal-bicho-fotografia-animal-fotografia-de-animais-14569122/

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  1. Quem nos dera dar apenas um click e voltarmos a ser criança. Tempos bons!

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  2. Na simplicidade há o que é mais belo . Muito bom.

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  3. Que lindo texto! Quanta sensibilidade! Os corações endurecidos com valores materiais não percebem que a natureza nos apresenta grandes belezas, no reino animal, vegetal e mineral.
    É bom que a gente continue tendo um coração de criança mesmo quando adulto. É bíblico: as crianças terão o reino do céu

    ResponderExcluir

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