Reis e rainhas do congado

  Acompanhando os congadeiros, ao longo do tempo, tenho aprendido muitas coisas e, a partir da observação do que acontece em suas festas, fi...

 


Acompanhando os congadeiros, ao longo do tempo, tenho aprendido muitas coisas e, a partir da observação do que acontece em suas festas, fico curioso e busco, na pesquisa, a origem de alguns hábitos ou costumes. Para entender as festas do congado a gente precisa viajar no tempo. Minhas observações, no entanto, são restritas ao centro oeste de Minas Gerais, território onde sempre atuei como religioso.

Sob a denominação “Congado” podemos colocar um leque de práticas e costumes religiosos e culturais. A palavra funciona como se fosse um guarda-chuva que abriga sob ela um conjunto de cantos, danças e rezas com algumas variações e muitas semelhanças. De início, ela nos remete ao Congo, um dos grandes reinos existentes no passado do Continente Africano que abrangia boa parte do norte atual de Angola e África Central. Sobre os grandes reinos antigos africanos poderíamos escrever muitas páginas. Mas, isso me levaria a desviar do foco sobre o qual pretendo falar, ou seja, a presença dos reis e rainhas congas nas festas do Congado ou “Reinado de Nossa Senhora do Rosário”.

Todos os grupos (ternos ou guardas) de congado que conheço possuem elementos comuns. Os santos de devoção desses grupos são, principalmente: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Ifigênia. Cada grupo escolhe uma data que varia de maio a outubro para organizar suas festas em honra desses santos e convidam os demais para participar das mesmas. Antes das festas levantam-se um mastro, ou mais,(1) em honra aos santos de devoção. No dia principal, que costuma durar o dia todo, organizam-se cafés e almoços para os participantes. Grande maioria desses grupos fazem questão da missa e procissão. Ao final das festas baixam-se os mastros com novas modalidades de orações onde se destaca a oração do terço, ou rosário de Maria.

Um grupo de Congado é composto de cantores, instrumentistas, capitão, reis, rainhas, príncipes e princesas. Mas, de onde vem essa organização? Quando tudo isso começou?  É bom ressaltar que a experiência de reis e rainhas remontam à África antiga. O primeiro grande império da África, sobre o qual se tem notícias foi o Império de Mali, onde por volta do ano 800, de nossa era, já encontramos vestígios de grandes cidades como Tombuctu, Jené e Gaô. Antes do império (Reino?) de Mali, Gana também foi um reino muito poderoso. Sua posição de destaque durou mais ou menos do ano 500 a 1000 quando Mali começou a se fortalecer a partir de mudanças de rotas comerciais (2).  Além desses dois reinos mencionados podemos enumerar diversos outros como por exemplo, os reinos Iorubás e daomeanos e mais tarde o reino de Matamba onde imperou a famosa Rainha Jinga (3). O Reino do Congo foi um grande reino e bastante organizado em suas hierarquias. Isso facilitou as negociações desse reino com a coroa portuguesa com início no Séc XV. Quando os portugueses chegaram ao Congo, por volta de 1483 eles encontraram uma sociedade organizada com suas capitais e um governo central, o mani congo, uma espécie de rei que centralizava em si os poderes civis e religiosos. A Capital Banza Congo onde vivia o rei era uma cidade que se igualava em tamanho às cidades europeias daquela época.

Como se pode perceber a tradição monárquica já existia na África antes mesmo que os africanos escravizados chegassem ao Brasil. Os escravizados no entanto, não eram considerados pessoas. Não passavam de objetos e, por isso, nem de longe, puderam se organizar como povo no Brasil Colônia. Aliás, qualquer forma de organização da parte deles poderia ser considerada subversiva e proibida por lei. Só mais tarde, quando os festejos religiosos deixaram de ser uma ameaça é que os negros puderam coroar seus líderes como reis e rainhas de tal maneira que não apresentassem nenhum perigo para o sistema escravagista. A coroação do rei congo, passou então, a ser um elo de ligação entre os negros brasileiros e um passado mítico africano que também lá, já não existia mais. Os reis congos ainda presentes nas festas do Congado foram muitas vezes chamados “reis de fumaça” para indicar que eram “reis imaginários” que em nada ameaçavam à ordem pública (4).

O primeiro registro de uma apresentação ritual que incluía um rei Congo, no Brasil aconteceu em 1642 quando aconteceu a visita do embaixador do Congo ao Recife Holandês. O que foi descrito sobre isso assemelha-se muito aos rituais desenvolvido mais tarde pelas irmandades do rosário. Na mesma ocasião em Palmares, na mesma região, acontecia o desenvolvimento de um reinado com pessoas foragidas da escravidão. Trata-se do Quilombo de Palmares cujo rei era Ganga Zumba, ou Zumbi.

O primeiro registro de coroação de reis e rainhas nas irmandades do rosário aconteceu em Recife em 1654. Até meados do Séc XVIII, a cerimônia restringia-se aos negros, angolanos e crioulos nascidos no Brasil. Mas houve tempos em que essa cerimônia também foi proibida. Em 1728, na Cidade de Salvador foi publicado um decreto proibindo tais coroações. O objetivo era evitar rebeliões mas, as alegações era de que os negros “roubavam os altares” e libertavam outros negros da prisão. (5). 

Em 1720, o Conde de Assumar, governador da Capitania de Minas Gerais e São Paulo, também proibiu as coroações de reis e rainhas negras nas festas do rosário. Bastante curioso é que foi nessa época (1717) que surgiu nas águas do Rio Paraíba, em São Paulo, a Santa Negra, que mais tarde foi coroada Rainha do Brasil. Sim, estamos falando de Nossa Senhora Aparecida! Ao que parece, a Mãe de Jesus aprovou o que os governantes reprovavam.

A presença do Rei Congo e Rainha Conga, nas festas de Nossa Senhora do Rosário, parece ligar ainda hoje, os Negros do Brasil com seu passado mítico na África. É preciso entender bem isso, para que não cometamos o erro de condenar novamente, quem já foi tão penalizados pela história! Pense nisso.


Foto: Arquivo Pessoal 

 

1-     https://ggpadre.blogspot.com/2021/10/o-sentido-do-mastro.html

2-     Souza Marina de Mello. África e Brasil africano. 2 ed. São Paulo: Ática 2007 – pp 34.

3-     https://ggpadre.blogspot.com/2023/07/rainha-jinga.html

4-     Diáspora Negra no Brasil. Linda M. Heywood (Org) . 2 Ed. São Paulo, Contexto, 2019 – pp 165.

5-     ----------- pp 173


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  1. Texto excepcional! Fenomenal conhecer, com essa riqueza de detalhes sobre a origem, dessa tradição belíssima, além de enaltecer nossas raízes arraigadas no continente africano e sua relevância no nosso tempo.

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  2. Uma grande pesquisa explicativa em uma das festas mais bonita de devoção a nossa senhora. Parabéns padre pelo excelente trabalho

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  3. Parabéns pelo trabalho maravilhoso 🙏

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  4. Penso que não desagrada ninguém ver e ouvir um grupo de congado, e que tem no Senhor um propagador já que em muitas oportunidades tem nos brindado com a apresentação deles.
    Conhecer a história de sua origem é valorizar mais, e portanto que continue incentivando inclusive dando informações porque ter memória ajuda a preservar a cultura.

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  5. Muito bom ter informações sobre o congado porque estes registros protege a cultura.
    Acredito que ninguém deixa de apreciar a apresentação do grupo de congado.

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