Palavras não bichadas
Existem alguns escritores que desconcertam a gente pelo uso que fazem da palavra. A palavra, na verdade, é a matéria prima, na arquitetura...

Existem alguns escritores que desconcertam a gente pelo uso
que fazem da palavra. A palavra, na verdade, é a matéria prima, na arquitetura
de um texto. Mas, assim como na arquitetura, alguns fazem verdadeiros milagres,
no uso da palavra acontece a mesma coisa. O arranjo delas dentro de um texto
faz toda a diferença. Uma coisa é dizer: “Passarinho
parou de cantar”. Essa é apenas uma informação. Passarinho desapareceu de
cantar. Esse é um verso de Guimarães Rosa. Desapareceu de cantar é uma graça
verbal. Poesia é uma graça verbal. (1)
Além de Guimarães Rosa, que brinca com as palavras, para
roubar-lhes, o caldo mais doce, Manoel
de Barros também se especializou em buscar as palavras no seu nascedouro para
compor sua poesia. “Eu queria pegar na
semente da palavra”. Ele não quer uma palavra suja ou “bichada”, mas a
palavra virgem cuja força é capaz de moldar nossas ideias em novas direções. “A terapia literária consiste em
desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”(2).
Dizer que as cigarras cantam ao cair da tarde é muito pobre ao poeta que
prefere afirmar: “As cigarras derretiam a
tarde com seus cantos...”
Para se escrever poesia é muito importante usar uma palavra
não bichada, pois, “o sentido normal das
palavras não fazem bem ao poema. Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso. Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. Não existir mais
rei nem regências. Uma certa liberdade com luxúria convém”. (3). A poesia
não trabalha somente as palavras, mas, principalmente, as imagens. “Imagens são palavras que nos faltaram.
Poesia é a ocupação da palavra pela imagem”. “As palavras se sujam de nós na viagem. Mas,
desembarcam no põem escorreitas: Como que filtradas. E livres das tripas do
nosso espírito”. Cabe ao poeta apenas lamber as palavras antes de colocá-las no
texto nas desordens necessárias, pois “poeta
é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”. (4)
Ao jeito de Manoel de Barros que preferia fazer vadiagem com
a palavra temos a poesia mais pura e limpa dos excessos:
Agora só espero a
despalavra: a palavra nascida para o canto – desde os pássaros. A palavra sem pronúncia,
ágrafa. Quero o som que ainda não deu liga. Quero o som gotejante das violas de
cocho. A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes do murmúrio. Que
fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos escuros. A
palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal: A
despalavra mesmo. (5)
Será que o poeta, ao brincar com as palavras, desestrutura a
linguagem? Veja o que disse, poeticamente, o autor:
Veio me dizer que eu
desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem
sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o
lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me
desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao
retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua
flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam
do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem
desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim?
Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram
a linguagem. E não eu. (6)
Já que tenho permissão para brincar com a palavra, então, toma
lá:
- Quem tem sangue quente ruboriza e fica vermelho. O sangue
do flamboyant ferve na floração;
- Se cada vento tivesse uma cor, o mundo seria uma perfeita
aquarela.
- O topete da
serra ficou azulado quando ela
encontrou-se com o céu.
- Adoro pamonha com ketchup. E meu lado indígena aberto à
modernidade.(7)
E viva os poetas!
1- Barros, Manoel de. 1916 – Poesia
Completa. São Paulo, Leya 2010 – Pp 404 - Tributo a João Guimarães Rosa
2- ------------- PP, 347
3- -------------pp, 265
4- -------------pp,257
5- ------------ PP,368
6- ------------PP,393
7- https://ggpadre.blogspot.com/2021/02/pilulas-de-pensamento.html
httFoto destaque: ps://pixabay.com/pt/photos/atracar-alta-charneca-p%C3%A2ntano-2796052/
Talento é uma dádiva, assim o poeta o escritor recebeu de graça este dom. Através das palavras cria o que sua imaginação com toda liberdade permite expressar para ser apreciada ou não.
ResponderExcluirEu fico encantada com muitas leituras que faço porque considero alimento para a alma.