Lindoia e sua morte lírica

  A habilidade de um artista faz com que até a morte nos pareça bonita. Foi essa a sensação que tive ao ler o épico de Basílio da Gama, cham...

 


A habilidade de um artista faz com que até a morte nos pareça bonita. Foi essa a sensação que tive ao ler o épico de Basílio da Gama, chamado “Uraguai”, quando tratou da morte da personagem Lindoia. Uraguai pode ser classificado como épico porque conta-nos a grande batalha de um povo que lutou bravamente para sobreviver ao sul do Brasil. Trata-se dos Sete Povos das Missões(Rio Grande do Sul) que, ao lado dos Jesuítas, tiveram que lutar contra espanhóis e Portugueses numa tentativa, desesperada, de sobrevivência. O texto clássico formado por cinco cantos e contendo 1.337 versos, lembra-nos, outros grandes épicos como Eneida, de Virgílio e Os Lusíadas, de Camões. Sua estrutura se assemelha também à Ilíada e Odisséia de Homero, obras que falam da origem de um povo.

O autor de Uraguai, Basílio da Gama é mineiro, natural da atual Tiradentes ( 1741-1795). Ainda jovem ele mudou-se para o Rio de Janeiro, tornou-se padre Jesuíta mas, desligou-se da Ordem em 1760. Acabou sendo preso em Portugal, pelo Marquês de Pombal mas, acabou trabalhando para ele após sair da prisão. Como se sabe, o Marques de Pombal deu ordem para expulsar todos os jesuítas do Brasil temendo que eles formassem, ao lado dos indígenas, um país independente de Portugal. Basílio da Gama, soube, como ninguém fazer costuras políticas para defender seus próprios interesses. Nada disso, no entanto, invalida a qualidade literária de sua obra.

O Livro Uraguai foi dividido em cinco cantos formados a partir de cânones literários do Arcadismo. No primeiro canto as tropas se reúnem para planejarem o combate contra os indígenas e os Jesuítas; no segundo, o texto mostra uma tentativa, frustrada, de negociação entre as partes guerreiras.  A luta sangrenta inicia; no terceiro canto, Padre Balda, Jesuíta que administrava os Sete Povos das Missões, mata Cacambo, o líder indígena com a intenção de casar Baldeta, seu filho, com Lindoia, a viúva de Cacambo; o quarto canto fala dos preparativos para o casamento de Lindoia com Baldeta. Acontece, que Lindoia foge para a floresta e se deixa picar por uma cobra, morrendo em seguida; no último canto, Gomes Freire, general português, prende os adversários numa aldeia próxima. Nesse canto enumera-se todos os crimes da Companhia de Jesus.

Fiz essa introdução, apenas, para situar o leitor mas, meu interesse era comentar a morte de Lindoia, a morte apresentada dentro de uma estética curiosa, que nos lembra outras mortes parecidas, como a da Rainha Cleópatra ou mesmo de Alfonsina Storn, na Argentina. Não me perguntem sobre a ligação entre elas, mas, ao ler o Uraguai, imediatamente, lembrei-me das outras mortes, por associação de ideias. Sobre a morte de Lindoia vou transcrever a parte narrada em prosa do IV Canto:

Para que tenha princípio a estranha festa, só falta Lindoia. Donzelas preparam grinaldas de flores. Cansados de esperar, vários índios saem a procurá-la. Ouvem de Tanajura (índia feiticeira) que ela entrara no jardim, triste e chorosa, sem consentir que fosse acompanhada. Um susto frio corre pelas veias de Caitutu (irmão de Lindoia), que deixa os seus no campo e tenta achar a irmã por entre as sombras do arvoredo. O grupo entra enfim na parte mais remota e interna de um antigo bosque negro, onde, ao pé de uma gruta cavernosa, uma fonte murmura entre jasmins e rosas. Cansada da vida, a mísera Lindoia escolhera esse lugar delicioso e triste para morrer. Reclinada ali, parece dormir na branda relva e nas flores mimosas. Tem o rosto na mão e a mão no tronco de um cipreste, que espalha sombras melancólicas em volta. Mais de perto, os índios descobrem que uma serpente se enrola no seu corpo. A cobra verde se move em torno do pescoço e do braços de Lindoia, e lambe seu seio. Todos se afastam, sobressaltados, e param, cheios de temor, ao longe. Temem que ela desperte assustada, que irrite o monstro, que tente fugir e aparece, fugindo, a morte. Mas, o hábil Caitutu, que treme pela vida da irmã, dobra as pontas do arco sem demora. Quase atira por três vezes, e vacila três vezes entre a ira e o temor.  Enfim sacode o arco e faz a seta voar. A flecha toca o peito de Lindoia e fere a serpente na cabeça. A boca e os dentes da cobra ficam cravados no tronco do cipreste. O monstro irado agita a cauda convulsa e se enrosca na árvore, e verte o veneno claro em meio ao sangue escuro. O desgraçado irmão leva nos braços a infeliz Lindoia. Ao despertá-la descobre, com que dor!, os sinais do veneno no rosto frio. Vê o peito ferido pelo dente sutil. Os olhos em que o Amor reinou um dia estão cheios de morte...

Nesse retrato da morte de Lindoia podemos ver que o amor se sucumbe ao veneno, assim como acontecerá, ao final do texto, quando os conquistadores movidos pela ganância, irão sufocar os sonhos de todo um povo.  Para não ceder a própria liberdade Lindoia prefere se dar à morte e, como uma ninfa dos bosques, deixa o seu corpo, sem vida, abraçado ao cipreste.

Imagem de Sandy Flowers por Pixabay

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  1. Aprecio muito e agradeço quando o Senhor compartilha as leituras que faz. Este texto muito interessante.
    Escolho fazer neu comentário retirando do livro livro "Troque de lugar com o outro" - vida/morte.
    Na vida normalmente é você que escolhe: ser ganhador ou perdedor. Cada pessoa constrói seu futuro alicerçado no passado e o seu caminhar tem alguns critérios de valores. A morte é necessária mas melhor que não tenha nossa participação, que ela chegue naturalmente.

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