Saudade é coisa de quem tem idade
Coisa mais estranha é a saudade, ela evoca uma presença, há muito tempo ausente. Entre a saudade e a idade, há mais ligações do que a rima...

Coisa mais estranha é a saudade, ela evoca uma presença, há muito
tempo ausente. Entre a saudade e a idade, há mais ligações do que a rima das
palavras. Só quem já viveu uma experiência pode recordar-se dela. Quem tem
saudade rumina, o que já foi digerido pelo tempo. O tempo que nos devora é o intermediário entre
a saudade e a memória. Para além de uma nova rima, isso também é grande
verdade.
Na mitologia grega, o tempo (Cronos) era filho da terra (Geia),
com o céu (Urano). Após assassinar o
próprio pai, tomando-lhe o poder e temendo sorte igual para si, Cronos devorava
todos os seus filhos logo que nasciam. De nada lhe adiantou tanta cautela pois,
ele também foi assassinado por Zeus, seu filho.
Quando era criança, e vendo essa imagem mitológica, achava estranho,
tamanha crueldade partido de um deus. Pensava que haveria uma relação necessária
entre a divindade e a bondade. Isso também não deveria ser uma simples rima...
A saudade é um sentimento semelhante ao tempo que nos devora.
Fiel companheira na velhice, ela também devora grande parte de seus filhos. Com
idade avançada, longe dos filhos e dos amigos, as pessoas são engolidas, aos poucos,
pelo Cronos, ou seja, pelo tempo. Alguns velhinhos olham, demoradamente, as
fotografias, buscando nelas um resto de esperança até que a deusa Mnemosine
(memória) se lhes apague definitivamente. Subjaz às fotos, o desejo de
superação do Cronos, do tempo. As imagens amareladas nos remetem às outras
épocas e acusam-nos de velhice. Pobres de nós! Estamos, igualmente, submetidos
à roda, implacável, do tempo. Por falar nele, o relógio me diz que devo
encerrar esse texto. Afinal, quem escreve também se curva a ele.
Foto: Arquivo pessoal