Eles roubavam crianças?

  O sol ainda não havia dado as caras e eu já estava em sua casa. Não deixa de ser descarado chegar muito cedo à casa dos outros. Pela sua c...

 


O sol ainda não havia dado as caras e eu já estava em sua casa. Não deixa de ser descarado chegar muito cedo à casa dos outros. Pela sua cara, já que o assunto começou abusando dessa palavra, notei o quanto estava preocupada. Cenho serrado, sobrancelhas pretas e cílios compridos, feito alpendre das antigas fazendas, ela me olhou e confessou logo sua preocupação: Ontem tive que dar uma dura na Regininha. Sabe o que ela fez? Foi sozinha catar gabirobas e nem me avisou quando saiu! E o pior, ela nem sabe que na “várge” do Lambari encontram-se diversos ciganos acampados. Sem entender a preocupação de Malvina, me fiz solidário com ela e, apenas, lhe disse: Pois é. Esse mundo tá perdido. Como uma menina de nove anos se atreve a se embrenhar pelos campos, sozinha, à procura do que não se perdeu?

Com o avançar da conversa, percebi que a inquietação de Malvina se apoiava numa lenda de que os Ciganos roubavam crianças. Meu Deus, pensei com mil botões, o que eles fariam com a tal Regininha, uma menina opilada e, de tão feia, parecia estar do lado avesso? Procurei tranquilizar nossa vizinha dizendo-lhe que isso não passava de uma lenda antiga sem nenhum fundamento, o que não era de todo mentira.

Os ciganos, povo nômade, de origem incerta já foram alvo de todo tipo de acusações ao longo da história: Furtar cavalos, donzelas, crianças, espalhar doenças... Os mais céticos chegaram a acusá-los de heresia e alguns até padeceram nas unhas da “santa” inquisição. Para entender essa lenga-lenga de furto de crianças é preciso voltar ao tempo e perceber que no passado as coisas eram bem diferentes de hoje. Algumas crianças, simplesmente, abandonavam a família e corriam atrás dos circos ou mesmo dos ciganos. E os pais, reclamavam? Nem sempre. Quem tinha mais de dez bocas a sustentar sabia o quanto pesava tudo isso. Meu avô materno, por exemplo, teve dezessete filhos e minha mãe casou-se com catorze anos. Era assim que as coisas funcionavam antigamente. Um casamento a mais e uma boca a menos para sustentar.

A imagem dos ciganos enquanto “ladrões de crianças” apoiou-se na literatura de Miguel de Cervantes que, em sua ficção, teceu esse quadro. Depois dele outros autores fizeram a mesma coisa.  (1) No séc. XIX esse tipo de acusações também recaia sobre índios, e a artistas, saltimbancos e circenses. “Ilustrando tais suspeitas, houve em Pará de Minas, em 1881, o caso do menino Benjamim Oliveira que fugiu junto com a Companhia Sotero, circo do qual posteriormente escaparia: Partiu com os ciganos (...) descobre, entretanto, que os ciganos desejavam trocá-lo por um cavalo. Escapou novamente”(2). Mas, essa parte de nossa  história vou deixar para meu amigo José Roberto, grande escritor que, brevemente, publicará um livro sobre Benjamim Oliveira.  

Seria interessante pesquisar as razões dessas lendas que povoaram o nosso imaginário infantil. Talvez, fosse um meio pedagógico de se educar as crianças em outros tempos. Quem não se lembra das histórias do “homem do saco”? Já ouvi muitas mães ameaçar os filhos rebeldes com essa história: - Pare de fazer isso, senão o homem do saco vai levar você! Desde cedo perdi o medo disso. Conforme você sabe, eu nasci na roça e o que a gente mais via, naquelas paragens, eram homens com sacos nas costas. Eu nunca me imaginei dentro de um daqueles sacos! Ainda bem, né? Já ouvi, também, outros casos envolvendo ladrões de mulheres. Soube que, ultimamente, algumas andam, enlouquecidas, procurando esse tipo de ladrão.  Mas, deixemos essa história para outro texto.

 

1 – Vaux de Foletier, 1983, p. 185; cfr. Cervantes, 1994, La Gitanilla (1613), PP. 31 – 96 apud. Teixeira Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: Uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007 – p. 120

2- Teixeira Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: Uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007 – p. 121.

Imagem de billy cedeno por Pixabay

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  1. Muito importante , riquíssimo texto e cheio de detalhes esta história de ciganos.Padre Geraldo Gabriel Esclarecendo prá nós as grandes verdades que poucos livros explicam ao povo humilde e amedrontados.Obrigada.

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  2. A Continuação do tema ciganos ficou muito boa a construcao deste texto. Entre fatos reais e fictícios sobre as fama dos ciganos eu acrescentaria a tal vidência que criaram ter as mulheres ciganas, leitoras de mãos.
    Confesso que em viagem a Guarapari como jovem namoradeira que fui, aceitei a oferta de uma tal cigana que estava na praia ofertando seus serviços. Eram muitas, com suas fartas e coloridas roupas.
    Felizmente evoluimos, então entregamos nosso destino a Deus, e o que vier que tenhamos sabedoria para enfrentar tudo a seu tempo. Digo que valeu a experiência paga à cigana, para o momento foi reconfortante ouvir mesmo que tenha sido enganação.

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