O preço de um voto
“O café frio não foi nada. Pior foi suportar a insistência de uma mosca que pousava na boca da morta e em seguida pousava na xícara de caf...

“O café frio não foi
nada. Pior foi suportar a insistência de uma mosca que pousava na boca da morta
e em seguida pousava na xícara de café...”
O relato acima me foi passado por um colega, cujo nome omitirei,
para preservá-lo de aborrecimentos. Ele foi candidato a vereador e, como tal,
não perdia um velório. Como é de conhecimento público, velório é um lugar que
costuma juntar muita gente dependendo do defunto. O que não foi o caso, na
ocasião. Naquela cidade pequena os velórios eram feitos em casa mesmo e só
juntava uns gatos pingados. E por falar em pingados a pinga, no caso, a bebida,
também não podia faltar. Seria até uma falta de consideração ao morto se, lá
pelas tantas, não aparecesse uma branquinha para espantar a friagem. Meu amigo,
Zé das Couves, vou chamá-lo assim, por enquanto, soube da morte da velha Chica Rezadeira que morava na virada da Serra
Verde. Ela sabia curar de quebranto, espinhela caída e vento virado. Rezou para
todo mundo e acabou sozinha, quase sem ninguém para rezar num dia importante de
sua vida, ou seja o seu último dia de vida.
Zé das couves adiantou-se para visitar a família enlutada,
assim que soube do ocorrido. Mostrou-se consternado e abraçou todo mundo. Por
pouco não chorou publicamente. Mas, não seria choro de tristeza e sim de
contrariedade ao ver que o viúvo, já “mamado”, naquelas alturas, o abraçou
chorando e babando sobre seu colarinho. Depois da comoção inicial e dos tradicionais
apertos de mão, o viúvo trouxe-lhe nas mãos uma xícara de café, frio. A mesma onde, antes, pousara a mosca, após uma breve excursão na boca entreaberta da morta. Por
algum descuido, ninguém se lembrou de amarrar o maxilar da defunta com uma toalha como era costume nas imediações. Quem nunca tinha visto
algo igual até pensava que o morto com a cara amarrada estivesse dormindo com
dor de dentes.
- “Aquele cafezinho,
custou-me a descer”, confessou-me. “Mas,
o que a gente não faz para ganhar um voto”, completou Zé das Couves.
Zé das Couves nunca perdeu uma eleição. Mas, em compensação, sabia
assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. Noutra ocasião, foi procurado por Maria
da Sina que, reivindicava, com insistência, um emprego para o seu marido junto à
prefeitura local. Todos sabiam que aquela fera corria mais do trabalho que o
diabo da cruz. Mas para um eleitor ele nunca dizia não. Prometia até lote na
lua, se fosse o caso. Depois culparia São Jorge por não ter conseguido
viabilizar o empreendimento lunar. Sabendo da indisposição do candidato ao trabalho
ele disse que sabia de uma vaga para magarefe (matador de bois) e, caso fosse do
seu interesse, poderia começar logo logo, no matadouro municipal. Diante da
proposta nada sedutora, Maria da Sina retrucou: “- Num dá pra ajeitá um sirvicinho mais leve pre’le não? O homi tá qué só o
pó”! Diante da recusa, Zé das Couves disse que ia ver se tomava outra
providência. Naquela hora não confessou para Maria da Sina que “Providência” era
o nome de uma cachaça boa que ganhara de outro eleitor no dia do famigerado
velório...
👏👏👏
ResponderExcluirAdorei essa história. Parabéns padre.Quem não gosta de trabalhar até passa mal ao ouvir a palavra.
ResponderExcluirEta estoria boa que se contou, mas claro que o Senhor escreve bem e nos envolve nas descrições com um bom senso de humor. Fica mesmo agradável de se ler.
ResponderExcluirÓtima a escolha da música ao final, também muito boa de se ouvir. Termino dizendo, obrigada pelos bons momentos dessa leitura.
Que triste realidade é essa... Difícil quebrar essas características dos políticos... Padre Gabriel toca nas mazelas humanas com sutileza e humor. Uma façanha! Todos os personagens apresentados estão desnudos!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirMuito bom 😃 me fez lembrar a música " O Político", do malandro Dicró:
"Povo da minha terra, na hora que eu mais precisei de vocês
Vocês me traíram
Mas não tem nada não, eu volto!
Dei cimento, dei tijolo
Dei areia e vergalhão
Subi morro, fui em favela
Carreguei nenê chorão
Dei cachaça, tira-gosto
E dinheiro de montão
E mesmo assim perdi a eleição (traidor!)
Traidor, traidor
Se tem coisa que não presta
É o tal do eleitor"
...
A história do velório me lembra de quando eu era pequeno e morria alguém conhecido,era desse jeito mesmo e quanto a esta música, eu tenho guardado um disco de vinil que tem ela solada no cavaquinho....... só saudades, obrigado padre.
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