Nau Catarineta
Entre as tantas coisas que poderiam nos encantar no Nordeste Brasileiro, o destaque desse texto vai para uma festa popular cujas origens...

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Entre as tantas coisas que poderiam nos encantar no Nordeste Brasileiro, o destaque desse texto vai para uma festa popular cujas origens se perdem no tempo. Refiro-me à Festa da Nau Catarineta, que em Portugal é chamada de Nau Catrineta. Mas, qual seria a razão para que esse poema épico de navegação existisse nos dois países tão distantes entre si? Bem, a distância física entre Brasil e Portugal (cerca de 7 mil km!) não é impedimento para a aproximação cultural. Isso se deve a diversos motivos, inclusive o fato do Brasil ter sido colonizado pelos portugueses.
Portugal sempre teve ao longo de sua história muita relação com o mar. Foi um grande conquistador no passado e levou sua cultura para diversas partes do planeta. Acredita-se que um descendente de português chamado Jorge de Albuquerque em uma de suas viagens marítimas para Portugal (1565) tenha sido alvo da pirataria francesa. Na ocasião, teve toda a comida de sua nau (navio a velas) roubada e a embarcação abandonada em alto mar com a tripulação. Histórias desse tipo não deviam ser raras para os desbravadores do mar, que na época não tinham, nem de longe a tecnologia que temos hoje para as grandes viagens marítimas. Jorge de Albuquerque era filho de Duarte Coelho, primeiro donatário da Capitania de Pernambuco.
Abandonado em alto mar, Jorge de Albuquerque teve que enfrentar as mais diversas dificuldades. Mortos de fome os marinheiros queriam sortear um dos tripulantes e fazer churrasco com sua carne para matar a fome dos outros. O comandante não concordou com isso e resistiu até o último momento quando apareceu outro jeito de resolver o problema e a embarcação acabou chegando em terra firme após vencer todas as tentações. Não quis vender a alma ao diabo para resolver um problema que parecia insolúvel. Guiado pela fé, acabou chegando com sua tripulação a um final feliz.
Em Portugal os contos do mar não eram raros. Esse poema ( Xácara), provavelmente, foi mais um, que atravessou o oceano. Foi coletado por Almeida Garrett, escritor e dramaturgo português em seu “Romanceiro” – 1799-1854. O conteúdo do poema revela uma verdadeira Odisséia à moda luso-brasileira. O bem e o mal disputam a alma do homem que deve atravessar um grande oceano nem sempre em calmaria.
Baseado nesse poema, que possui 18 versos, nasce a Festa da Nau Catarineta. Essa festa recebe também o nome de marujada ou chegança, conforme a região. Na Paraíba, em Cabedelo, Município próximo a João Pessoa a festa é muito viva e arrasta multidões. A festa que é basicamente masculina pois os envolvidos são marinheiros. Mas, curiosamente, aparece em Cabedelo, a figura de mulher. Trata-se de “Saloia”. Assim eram chamadas as pastoras e trabalhadoras rurais em Portugal. A Saloia entrou, clandestinamente, na embarcação para cantar o fado em terras distantes. A festa de forma teatral liberta a Saloia da prisão onde foi colocada. Tudo isso é animado com muita música e dança.
Leia abaixo a letra do poema Nau Catarineta:
Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
– “Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!”
– “Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar.”
– “Acima, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!”
– “Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!”
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar.”
– “Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.”
– “A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.”
– “Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar.”
– “Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.”
– “Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.”
– “Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar.”
– “Dar-te-ei a Catrineta,
Para nela navegar.”
– “Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar.”
– “Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?”
– “Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!”
– “Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar.”
Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.
A Nau Catarineta é uma das festas mais antigas plantadas no Brasil pela Cultura Portuguesa. Ao lado de outras festas ela carrega a magia de contar uma história a partir do imaginário do povo simples. Deus queira que ela continue ao lado de tantas outras festas que falam da alma e da beleza de nosso povo.
Ouça abaixo o Programa de Rádio que apresentei sobre esse assunto: