Sincretismo Religioso
Demorei-me, bastante, para escrever sobre esse assunto porque falar dele é caminhar sobre areia movediça. Corremos o risco de sermos ...
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Demorei-me, bastante, para
escrever sobre esse assunto porque falar dele é caminhar sobre areia movediça.
Corremos o risco de sermos engolidos sem atingir o alvo desejado.
O tema: “Sincretismo Religioso” está
desgastado de tão velho. Mas, ainda assim, prefiro falar sobre ele dentro de
duas condições: Minha falta de preparo e a proposta de escrever textos curtos,
que combinem com a pressa de nossos dias. Por causa da primeira condição
procurei amparar-me nos autores citados ao final do texto. Muita gente, mais
competente do que eu, já escreveu, com propriedade sobre isso. Bons textos já
se produziram nesse sentido. Mas, tenho para mim que, enquanto eu mesmo, não me
apropriar do tema não conseguirei boa didática para sua exposição. Acho que
todo professor costuma pensar assim.
A palavra “Sincretismo” Foi usada
por Plutarco, pensador grego do mundo antigo ( 46 d. C), pela primeira vez (1).
Ela vem, portanto, do grego “sygkretismós” = reunião das ilhas de Creta contra
um adversário em comum (2).
Em vez de usar essa palavra,
alguns, atualmente, preferem usar “Hibridismo Religioso” (3). O Dicionário
Enciclopédico das Religiões define o sincretismo religioso como uma tolerância,
uma mistura inconsciente, uma tentativa de aproximação de doutrinas ou práticas
diversas, uma combinação de elementos emprestados de outros cultos, uma
apreensão global e mais ou menos confusa de um todo; uma tentativa de
harmonizar todas as concepções religiosas...
Na verdade ela trata-se da
“mestiçagem das crenças” (4) ocorrida no Brasil, quando uma religião acabou
influenciando a outra de alguma maneira. Mas, esse fato não ocorreu e ocorre só
no Brasil. As grandes religiões influenciaram, mas também receberam influências
uma das outras. Em alguns pontos acabam “mestiçando” e assumindo matizes com
colorações diferentes. No Brasil o catolicismo influenciou e recebeu influência
de diversos povos com suas culturas e crenças religiosas. Apesar disso, como
religião dominante acabou prevalecendo sobre as demais. Essa lógica também
parece universal: uma religião mais estruturada acaba se impondo sobre as
outras. Mas, para que isso aconteça, ela também faz algumas concessões.
Em seu livro: Sincretismo
Religioso & Ritos Sacrificiais, José Carlos Pereira abordou as influências
das religiões afro no catolicismo popular brasileiro. Fez um recorte do
catolicismo popular, focalizando-o em três momentos: Influências africanas que
recebeu; paralelismo sincrético entre os santos católicos e os orixás e
abordagem das semelhanças entre os rituais sacrificiais afro e católicos.
De acordo com o Dicionário E.
Religiões há três tipos de sincretismo católico: O catolicismo guerreiro, o
patriarcal e o popular. O catolicismo popular é a interpretação que foi dada
por índios e africanos à religião dominante.
O “catolicismo guerreiro” se deu
através da união entre a cruz e a espada. Dessa maneira os portugueses
impuseram pela fé e pela força a religião cristã aos povos dominados. Aos
padres jesuítas cabiam às conquistas espirituais, aos soldados da coroa
portuguesa cabiam garantir a dominação territorial (5). Dentro dessa perspectiva,
evangelizar e colonizar eram as duas faces da mesma moeda...
O “catolicismo patriarcal” se
instalou com a criação e o desenvolvimento dos engenhos de açúcar, fazendas de
cacau, fumo, algodão e mineração (6). O “catolicismo popular” foi a
interpretação dada por índios e africanos à religião dominante.
Chegou também ao Brasil, segundo
José Comblin, um catolicismo de raiz medieval, que ele chamou de “catolicismo
penitencial” (7). Segundo ele, foram os monges irlandeses que, a partir do
século VI, difundiram através da Europa, uma concepção do Cristianismo marcada
por rígida repressão corporal, através de frequentes práticas de penitências e sacrifícios.
A valorização do Cristo sofredor e consequentemente a devoção ao Senhor Bom
Jesus, ganharam destaque nessa modalidade de catolicismo. E nesse ponto ele se
aproximou do catolicismo popular, carregado de promessas, penitências e
sacrifícios. Sacrificando o próprio corpo o devoto crê estar agradando ao
santo, ou ao Senhor Bom Jesus, que nessa perspectiva acaba sendo um santo como
os outros...
Esse catolicismo popular, não
romanizado, interpretado a partir de outros olhares e culturas, também entendido
como religiosidade popular, nunca deixou de existir. A relação entre o que é
considerado oficial (romanizado) e o popular quase sempre foi tensa. Daí se
entende que, até hoje, alguns pensem, que devem ser expulsos da Igreja tudo
aquilo que destoa da rígida norma litúrgica. A grande tensão entre catolicismo
popular e oficial foi, amplamente, abordada no filme de Anselmo Duarte, “O
pagador de promessas” (8), de 1962, ano do Concílio Vaticano II.
No filme, o personagem Zé do
Burro, fez uma promessa para Santa Bárbara, num Terreiro de Candomblé, sem
diferenciar a mesma de Yansâ. Seu burro, o Nicolau, fora, terrivelmente, ferido
por um raio. Sem saber o que fazer, Zé fez uma promessa de carregar uma cruz
até a igreja mais próxima que fosse dedicada a Santa Bárbara. Tal igreja distanciava 42 km de sua casa!
Mas, além disso, prometeu à Santa dividir suas terras com os camponeses da
região. Sua presença na cidade foi alvo de múltiplas visões. Alguns o chamaram
de comunista, outros de louco. Padre Olavo, outro personagem do filme, que representa
a religião oficial, inicialmente, conversa com o pagador de promessa. Mas, ao
saber que ele fizera a promessa num Terreiro de Candomblé se recusa a abrir
para ele as portas da igreja. Zé do Burro continua firme. Para ele “promessa é
dívida”. Até o bispo entrou na contenda. Queriam que ele renunciasse à
promessa. Depois de alguns dias, resistindo a uma ordem de prisão ele acabou
sendo assassinado na porta da igreja. Os populares colocaram o seu corpo sobre
a cruz e arrombaram a porta do templo. Assim, ele não deixou de cumprir sua
promessa, mesmo após a morte... Seu corpo entrando na igreja como vítima
imolada lembrou o sacrifício do próprio Cristo, que deu sua vida por nós. Os
sinos e os berimbaus se reconciliaram diante desse fato tremendamente
significativo!
A religiosidade popular é uma
forma simples, encontrada pela gente do povo, de viver a sua fé. Ela não tem
uma teologia elaborada e nem se preocupa com normas rígidas. Mas, é autêntica e
verdadeira. O personagem Zé do Burro mostra isso no seu comportamento. A santa
o atendeu então, ele tinha uma dívida com ela. Mas, essa lógica da oferta e
retribuição é própria do Candomblé, onde se desconhece o conceito de “graça” ou
mesmo de retribuição após a morte. Para que a ordem do mundo e o equilíbrio da
existência sejam mantidos, este “dar-e-receber” não pode ser interrompido (9).
Compreender o sincretismo
religioso é compreender as raízes da cultura brasileira. Nosso povo formou-se
de uma “salada mista”, de povos diversos e crenças diferenciadas. O Catolicismo
acabou prevalecendo sobre as demais religiões. Mas, por aqui, ele também ganhou
um colorido próprio, com as marcas de nossa gente. Sufocar as festas populares,
as devoções, as romarias e outras manifestações empobrece a própria religião. Essa
“mestiçagem” entre as religiões, não é privilégio nosso. Mas, por causa de
nossa origem mestiça talvez, aqui seja mais evidente, que em outros lugares do
mundo.
Fontes consultadas para esse texto:
1-
SCHLESINGER, Hugo. 1920. Dicionário
enciclopédico das religiões/ Hugo Schlesinger e Umberto Porto. Petrópolis, RJ:
Vozes,1995.
2-
Dicionário Petit Roberto, S. N. L, París, 1982 e
Hermínio B. de Oliveira, Formação histórica da religiosidade popular no
Nordeste, p. 51. Apud: PEREIRA, José
Carlos. Sincretismo religioso e ritos sacrificiais: Influência das religiões
afro no catolicismo popular brasileiro. São Paulo: Zouk, 2004. P. 18
3-
PEREIRA, José Carlos. Sincretismo religioso e
ritos sacrificiais: Influência das religiões afro no catolicismo popular
brasileiro. São Paulo: Zouk, 2004. P. 88
4-
RODRIGUES, Nina. L’animisme fetichiste des
nègres de Bahia. Salvador : Reis & Cia. 1900. Apud: POEL, Francisco van
der. Com Deus me deito, com Deus me levanto. São Paulo, Paulinas, 2018. P. 336.
5-
AZZI, Riolando. A Cristandade Colonial: um
projeto autoritário. Rio de Janeiro, São Paulo, Paulinas, 1987.
6-
SXHLESINGER, Hugo. Op. Cit.
7-
José COMBLIN, Para uma tipologia do catolicismo
no Brasil. Apu: PEREIRA, José Carlos. Op.Cit. P. 59.
8-
DUARTE, Anselmo (dir). O pagador de promessas,
Cinearte Produções Cinematográficas Ltda, 1962. 91:03m.
9-
BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás:
um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. Petroplis, RJ: Vozes,
1997. P. 191.
Link da imagem: http://sesc.ms/wp-content/uploads/2019/05/o-pagador-de-promessas.jpg
..."A religiosidade popular é uma forma simples, encontrada pela gente do povo, de viver a sua fé"...
ResponderExcluirMuito belo.