Sufismo: Amai menos o jarro do que a água!

O Islamismo não pode ser visto como uma religião monolítica. Ele também sofreu divisões e contempla posturas diferenciadas. A primeir...



O Islamismo não pode ser visto como uma religião monolítica. Ele também sofreu divisões e contempla posturas diferenciadas. A primeira divisão interna surgiu após a morte do Profeta Muhammad e a disputa pela sua sucessão. Os dois grupos eram os Sunitas (“tradicionalistas”, de Sunnah, tradição, formado atualmente, pela maioria dos muçulmanos, cerca de 87%), e os Xiitas (partidários de Ali, o genro de Maomé). Ali deveria ser o sucessor do profeta, mas foi preterido por três vezes e, finalmente, assassinado.

Além dessa cisão histórica examinemos uma divisão com conotações universais. Trata-se da divisão entre os “místicos do islã” (Sufis) e a grande maioria dos muçulmanos que são bons fiéis, mas nem sempre místicos. A palavra “Suf” quer dizer lã. Um ou dois séculos após a morte do Profeta, um grupo de muçulmanos – esotérico – (1) passou a sondar com mais atenção à mensagem interior do Islã. Esse grupo foi chamado de “Sufis” por causa da roupa grosseira que usava, feita de lã, em protesto, contra o excesso de luxo dos sultões e califas. Com uma vida austera procuravam restaurar a fé e livrá-la dos excessos da época. Para eles, o externo deveria contar menos que o interno, ou seja, a experiência íntima de Deus. Por isso, diziam: “Amai menos o jarro e mais a água”! O Alcorão justifica essa busca pelo “Invisível” (57:3).

Para todo muçulmano a contemplação a Deus é muito importante. Mas, cercado de tantas tarefas do dia-a-dia, a grande maioria coloca essa importância ao lado de outras. Para os sufis isso não pode acontecer. Eles têm “pressa” em contemplar Deus, já nessa vida. Para isso criaram métodos especiais e procuravam, já no Séc XII, reunir em grupos em torno de um mestre na busca desses ensinamentos. Esses grupos foram chamados de “tariqahs”(2).  Os membros foram chamados de faquir que, literalmente, significa “pobre”, pobre em espírito. Podemos comparar as tariqahs às ordens contemplativas do catolicismo, embora os faquires possam casar e ter filhos. Eles procuram ter uma vida normal, mas frequentam sempre os locais de reunião para rezar, cantar, dançar e ouvir ensinamentos de um mestre. O objetivo é o mesmo: Alcançar Deus diretamente. Um indivíduo que não conhece o fogo, dizem, poderia vir a conhecê-lo pouco a pouco: Primeiro, ouvindo falar dele, depois vendo-o e, finalmente, sendo queimado pelo seu calor... Os sufis querem ser “queimados” pelo amor de Deus.

Para conseguirem essa aproximação de Deus os Sufis desenvolveram três caminhos: 
Misticismo do amor,
Misticismo do êxtase,
Misticismo da intuição.

A, Misticismo do amor: Poesia amorosa. O amor é mais presente quando o objeto do amor está ausente. Por isso, os poetas lidaram com a aguda dor da separação para, desse modo, aproximarem mais de Deus. Jala ad- Din Rumi utilizou a imagem da flauta de junco para falar desse sentimento:

Ouve a história contada pelo junco, sobre sua separação. “Desde que fui cortado do juncal, produzo este som lastimoso. Todo aquele separado de quem ama compreende o que digo, todo aquele arrancado de sua fonte anseia por retornar...”

Sem o amor de Deus somos como flautas que “ocadas” por dentro só emitem canções lamuriosas. Deus é que nos preenche, pois seu amor por nós é pleno e sem limites.

“Para Rûmî, o amor é expressão da nostalgia da separação original. Trata-se de uma metafísica que anseia pela unidade”(3).

O Misticismo do amor produz o “Conhecimento do Coração”.

B, Mística do êxtase: O místico, neste caso, é arrebatado para fora de si mesmo. Essa experiência de Deus difere de todas as outras. A principal metáfora para os sufis estáticos, era a Jornada Noturna do Profeta pelos sete céus, chegando até a Divina Presença. Os sufis não afirmam que chegaram a ver o que Maomé viu naquela noite de êxtase, mas procuram caminhar nessa direção. O conteúdo que experimentam nesse modelo de misticismo é tão belo que às vezes eles entram numa espécie de transe, devido à total abstração de si mesmos. Talvez o poema de Rûmî, “Dançarinho em Transe” ajude a entender essa mística:

Noite e dia, em êxtase ele dançava, na terra girava como giram os céus. Rumo às estrelas lançava seus gritos e não havia quem não os escutasse. Aos músicos provia ouro e prata, e tudo o mais de seu entregava. Nem por um instante ficava sem música e sem transe, nem por um momento descansava... Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto. A todos surpreendia que o grande sacerdote do Islã, tornado senhor dos dois universos, vivesse agora delirando como um louco, dentro e fora de casa. Por sua causa, da religião e da fé o povo se afastara; e ele, enlouquecido de amor. Os que antes recitavam a palavra de Deus agora cantavam versos e partiam com os músicos. (4)

O misticismo do êxtase produz o conhecimento visual ou “visionário”. Esquecido de si, o místico toma conhecimento da realidade profunda de Deus. Nesse processo ele se “embriaga” do divino.

C, Mística da intuição: A mística da intuição acontece graças ao que os sufis chamam de “olho do coração. Assim, procuram enxergar os símbolos ocultos dentro do próprio Alcorão. Por exemplo: Os muçulmanos pedem perdão pelos seus pecados. Na mística da intuição os sufis pedem perdão pela existência. Pois existência envolve criação e toda criação é um ato para fora. Existir, portanto pode ser entendido como algo para fora de Deus. Para eles o mundo, obviamente, não é Deus, mas graças ao “olho do coração” podem perceber Deus “disfarçado” , Deus, velado em todas as coisas. Para os muçulmanos a primeira afirmação de fé é: Não há outro deus a não ser Deus. Os sufis que enxergam o mundo com os olhos do coração podem dizer: “Não há nada a não ser Deus”. Com isso desafiam a ideia de independência das coisas com relação a Deus. O que dá polimento ao coração é a invocação de Alláh. Por isso, os sufis invocam o nome de Deus com muitas repetições. Assim se esquecem de si mesmos...

Os muçulmanos veem o sufismo de duas maneiras diferentes. Muitos se dizem sufis mas não tem nenhuma prática da religião tradicional revelada ao Profeta. O sufismo adota certas liberdades que o muçulmano tradicional não pode tolerar, no que diz respeito à ortodoxia da fé. Talvez, o poema de Rûmî, aponta nessa direção:

“Não sou muçulmano nem cristão, judeu ou zoroastrista; não sou da terra nem dos céus, não corpo nem alma...”

Diante desse pensamento pouco ortodoxo, os muçulmanos pensaram que a pureza da fé estivesse ameaçada. Quando  Al-Hallaj, poeta sufi afirmou: - “Eu sou Deus”, os muçulmanos tradicionais (exotéricos),entenderam isso como uma grande blasfêmia.   O autor, na verdade, falava de uma essência divina que habitava nele. Mas, não adiantou. Acabou sendo condenado à morte por crucificação aproximadamente em 927.

O sufismo pode parecer perigoso àqueles que zelam pela pureza da fé e dos ensinamentos. O místico sufi recebe uma iluminação divina nas “práticas de meditação” e essa iluminação traz ensinamentos que podem parecer incompatíveis com os ensinamentos já estabelecidos. Por isso muitos mestres espirituais tem sido discretos em seus ensinamentos e reservam tais ensinamentos a discípulos capazes de compreendê-los. Também pelas mesmas razões as autoridades “exotéricas” veem com compreensiva suspeita as práticas sufis. Hoje o que se percebe é um sadio equilíbrio entre o esoterismo e o exoterismo.

As poesias e as fábulas são instrumentos de ensino do sufismo. Através delas eles transmitem suas mensagens. Termino esse texto com a “Fábula das Areias”, um conto sufi, cheio de significado para quem pretende mergulhar nesse universo místico:

Fábula das Areias:

Um regato, vindo de sua fonte nas longínquas montanhas, passando por todos os tipos e espécies de regiões, finalmente alcançou as areias do deserto. Da mesma forma que atravessou todas as outras barreiras, tentou atravessar esta também, mas se deu conta de que ao entrar em contato com a areia, suas águas desapareciam.

Estava convencido, contudo, que seu destino era atravessar este deserto, mas não havia como. Uma voz oculta, vinda do próprio deserto, sussurrou:

“O vento atravessa o deserto, e da mesma maneira o regato pode fazê-lo.”

O regato objetou que estava investindo contra a areia, e tudo que obtinha era ser absorvido; que o vento podia voar e por isso podia atravessar um deserto.

“Você não pode atravessar abrindo caminho de sua forma costumeira. Você ou desaparecerá ou se tornará um pântano. Você precisa permitir que o vento o carregue ao seu destino.”

“Mas como isso pode acontecer?”

“Permitindo-se ser absorvido no vento.”

Esta ideia não era aceitável para o regato. Afinal de contas, ele jamais fora absorvido antes. Ele não queria perder sua individualidade, e uma vez perdida, como saber se ela poderia um dia ser readquirida?

“O vento,” disse a areia, “executa esta função. Ele ergue a água, carrega-a sobre o deserto e então a deixa cair novamente. Caindo com chuva, a água de novo se torna um rio.”

“Como posso saber que isso é verdade?”

“É assim, e se não acreditar, você não poderá passar de um lamaçal, e mesmo isso poderia levar muitos e muitos anos; e certamente um lamaçal não é o mesmo que um regato.”

“Mas não posso permanecer o mesmo regato que sou hoje?”

“Em nenhum dos casos você pode permanecer assim”, disse o sussurro. “Sua parte essencial é levada para longe e novamente forma um regato. Você se chama pelo que você é hoje, porque não conhece qual é sua parte essencial.”

Quando ele ouviu isso, certos ecos começaram a surgir em seus pensamentos.  Vagamente, se lembrou de um estado no qual ele – ou seria uma parte dele? Foi erguido nos braços de um vento. Lembrou-se também, - será mesmo? – que esta era a coisa real, mas não necessariamente o óbvio a ser feito.

E o regato ergueu seu vapor nos receptivos braços do vento, que gentil e facilmente o transportaram para cima e adiante, deixando-o cair suavemente tão logo eles alcançaram o topo de uma montanha, muitos quilômetros além.

E porque teve suas dúvidas, o regato foi capaz de se lembrar e gravar mais fortemente em sua mente os detalhes da experiência.

Ele refletiu: “Sim, agora descobri minha verdadeira identidade”.

O regato estava aprendendo. Mas as areias sussurraram: “Sabemos, pois vemos isto acontecer todos os dias; nós, as areias, nos estendemos da margem do rio até a montanha”.

E é por isso que se diz estar escrito nas areias o caminho pelo qual o curso da vida deve continuar sua jornada. ”(5)

..........................................................

1-      Esotérico = de esô, em grego, dentro, ou seja, pertencente a um círculo íntimo de iniciados e procura conhecer mais intimamente a mensagem de fé.  A grande maioria dos muçulmanos é exotérica, com “x” ou seja,  contentam com o sentido explícito da mensagem do Alcorão.

2-      Tariqahs ou Turuq, do árabe = confrarias esotéricas islâmicas, da corrente contemplativa e mística do Islã. As turuq foram estabelecidas a partir da Idade Média por grandes figuras da religião islâmica, como Rûmi, Abdal al-Qadir al-Jilani, os xeiques Darqawi e Shadhili, entre outros. cola à seita e o espírito ao guru.

3-      No limiar do Mistério. Mística e Religião / Faustino Teixeira (Org) – São Paulo, Paulinas, 2004. PP 314.

4-      Rûmî. A dança da alma. Poemas de Jalal ud-Din Rumi. Seleçã, trad. e comentários de Rafael Arrais. Coleção Clube de Autores. Textos para Reflexão. 2013.


6-      Observação: Esse esquema foi elaborado a partir do Livro:
Smith, Huston. As religiões do mundo: Nossas Grandes Tradições de Sabedoria. São Paulo, Cultrix – 10ª edição. 2007.

Obs: Esse esquema foi escrito apenas para ajudar os alunos na compreensão da religião. Qualquer pessoa que não se sentir confortável com o que está escrito acima pode se manifestar que terei enorme prazer em corrigir.

Imagem de DarkWorkX por Pixabay 


Related

Textos didáticos 7130978371473976613

Postar um comentário

  1. Muito profundo, bastante dialógico e filosófico. Realmente o externo não pode ser mais que o interno, que a experiência íntima com Deus...

    ResponderExcluir
  2. “O vento,” disse a areia, “executa esta função. Ele ergue a água, carrega-a sobre o deserto e então a deixa cair novamente. Caindo com chuva, a água de novo se torna um rio.”..

    ResponderExcluir
  3. A morte não é o fim. O choro é pela ausência física do ente amado.

    ResponderExcluir
  4. Aqui é uma breve passagem, estamos todos caminhando para a Terra P
    Prometida. O Céu.

    ResponderExcluir

Deixe aqui seu comentário

emo-but-icon

Siga-nos

dedede2d

Vídeos

Mais lidos

Parceiras


Facebook

item