A Escravidão que já existia na África

Quando falamos da escravidão negra no Brasil corremos o risco de imaginar que esse “comércio de gente”, na África, teve início com os...



Quando falamos da escravidão negra no Brasil corremos o risco de imaginar que esse “comércio de gente”, na África, teve início com os portugueses. Não foi bem assim. Ele já existia por lá. Mas, é bom esclarecer que para os nativos daquele continente não havia ainda uma ideia de África, como um único continente, assim como, certamente,  não havia uma ideia de Brasil para os diversos povos indígenas que habitavam essas terras na ocasião do descobrimento. 

O que havia na África, antes das grandes navegações portuguesas, era diversos reinos independentes entre si, e às vezes rivais. Aqueles que estivessem fora de um determinado reino podia ser visto como inimigo, podendo, inclusive ser capturado, morto ou vendido como escravo. O entendimento “pan-africano” que entende a África como unidade é, relativamente, recente. Então, seria um anacronismo afirmar que os africanos escravizavam outros africanos, pois essa ideia de África, simplesmente não existia.

A escravidão na África era anterior à chegada dos traficantes europeus e continuou após a partida deles. Acredita-se que no séc. XVIII houvesse a mesma quantidade de escravos tanto na África quanto na América, ou seja, entre 03 a 05 milhões em cada continente.  As razões para a escravização de pessoas eram diversas: Guerras, dívidas, condenação judicial e outros delitos e até mesmo para sacrifícios humanos.

Ter muitos escravos na África era sinal de prestígio enquanto no Brasil era ter mão de obra. Tanto lá quanto aqui, havia muita terra e poucos braços. No Brasil o escravo era visto como “ferramenta” para o trabalho, assim como uma foice ou um trator. Perdendo essa função de trabalho perderia toda a utilidade e poderia ser descartado como um objeto qualquer. Na África ter muitos escravos conferia poder ao rei ou chefe de clã.

Na África a ideia de escravidão continuava mesmo após a morte do escravo. Quando morria um rei alguns escravos poderiam ser sacrificados para acompanhar o senhor na vida além-túmulo. Mas, o sacrifício de escravos também poderia acontecer para aplacar a ira dos deuses, para pedir chuvas ou boas colheitas.

No séc. XVII, o holandês Pieter de Marees escreveu que, na ocasião da morte de um rei na Costa do Ouro (atual Gana), cada um dos nobres oferecia um escravo para acompanhá-lo ao túmulo (...). Na mesma época o Capitão Francisco Lemos, que vivia na região da atual Guiné-Bissau, contou que, depois da morte de um rei chamado Mahana, durante todo o ano em que duraram as cerimônias fúnebres, foram sacrificadas 104 moças e rapazes (*).

Outro costume curioso em algumas regiões era a maneira de enterrar um escravo que morria devendo ao seu senhor:

Os xerbros, no litoral de Serra Leoa, enterravam o cativo nu ou coberto por trapos, para demonstrar que nada possuía, e com as mãos e os pés atados por uma corda, cuja ponta comprida devia sair da cova e amarrar-se a um mourão fincado no solo. Antes de sepultá-lo, o dono lhe dava uma chibatada, para deixar claro que continuava a ter autoridade sobre o espírito do morto, que, no além, deveria ser escravo dos antepassados do seu senhor (**)

Uma modalidade de escravidão bastante comum, em algumas regiões da África era a peonagem. Em situações de grandes dificuldades a família poderia oferecer alguns de seus membros para trabalharem como peões. Não conseguindo resolver as dificuldades os peões seriam transformados em escravos.

Que a escravidão já existia na África, antes da chegada dos traficantes de escravos europeus era fato. Mas, ela nunca ganhou uma proporção tão grande como após o comércio marítimo. A partir de 1650 a venda de seres humanos passou a ser a principal atividade econômica na costa da África. O comércio de escravos mudou até mesmo a geografia da África pois em busca de escravos os traficantes penetravam cada vez mais pelo interior do continente. Muitos reinos desapareceram e novos reinos surgiram. Além disso, o equilíbrio demográfico também mudou. A África passou a ter mais mulheres do que homens, pois grande parte desses foi escravizada. No Brasil aconteceu o contrário. O número de homens passou a ser bem maior do que o número das mulheres. Esse impacto demográfico, talvez não foi maior, na África, em razão da poligamia, pois, nessa condição,  um homem poderia ter mais de uma mulher.

Como se pode ver, quando o assunto é escravidão, seja no Brasil ou na África, muita coisa ainda precisa ser recontada. Não podemos ter uma compreensão maniqueísta do tema como se de um lado estivessem os heróis e do outro os mocinhos. Nada na história é muito simples. Mas, compreendê-la, de forma honesta talvez, seja uma boa condição para não cometermos os mesmos erros do passado...

*Gomes, Laurentino. Escravidão – Vol I. RJ – Globo Livros, 2019. Página 160
** Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo, PP. 83 -84. Citado por Laurentino Gomes. Escravidão – Vol I.  PP. 157.

Imagem de Charles Nambasi por Pixabay 

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  1. As pesquisas de Laurentino Gomes transformaram-se em um livro pesadíssimo...
    E nesse texto, o senhor retrata, com a maestria que lhe é peculiar, os horrores por que passaram e passam ainda os nossos irmãos negros...
    Situação de difícil compreensão para quem entende que a raça humana é única.
    Parabéns por nos brindar com esse triste conhecimento.
    Abraço

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  2. Ótimo e seus textos nos ajudam a conhecer mais essas questões sobre a Àfrica! Obrigada

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