Sarapalha: Os delírios amorosos sob uma febre terçã
Sarapalha é o terceiro conto do Livro Sagarana, de Guimarães Rosa. Como toda a obra Roseana, ele trabalha os dramas humanos. A história é ...
Sarapalha é o terceiro conto do Livro Sagarana, de Guimarães
Rosa. Como toda a obra Roseana, ele trabalha os dramas humanos. A história é
localizada em Sarapalha, um arraial do interior de Minas, às margens do Rio
Pará, completamente tomado pela malária. Também conhecida como "maleita",
"sezão", "impaludismo" e "febre palustre", a
malária é causada por um protozoário. A febre causada pela doença é
intermitente e, por isso, é chamada de terçã ou quartã dependendo do intervalo entre os períodos em que ela se manifesta.
Por causa da epidemia praticamente todos os habitantes de
Sarapalha mudaram-se de lá restando apenas alguns moradores: Dois primos
Argemiro e Ribeiro, Ceição, uma preta velha, que preparava a comida para ambos
e o cachorro Jiló. Primo Ribeiro, pensando que morreria em breve contou para
Argemiro que sua esposa, Maria Luiza, o havia trocado por outro homem fugindo
de casa com um boiadeiro. Em sua fala a gente pode perceber o tamanho de sua
dor:
— Também, não sei: eu
hoje cansei de sofrer calado… Vem um dia em que a gente fica frouxo e arreia…
Também, eu só estou falando é com você, que é p’ra mim que nem um irmão. Se
duvidar, nem um filho não era capaz de ser tão companheiro, tão meu amigo,
nesses anos todos… E não quis me deixar sozinho, mesmo tendo, como tem, aquelas
suas terras tão boas, lá no Rio do Peixe. Não precisava de ter ficado.., O
sofrimento era só meu. — Eu também senti muito, Primo Ribeiro.
O detalhe é que Primo
Argemiro também gostava de Maria Luiza. Enquanto deliravam de febre os
compadres acabavam revelando os seus sentimentos um para o outro. Os delírios
também eram intermitentes e, às vezes, um nem sabia quando o outro delirava.
Certo dia, Argemiro confessou ao primo Ribeiro o amor que sentia por Maria Luiza, embora nunca houvesse falado com
ela sobre esse amor:
— Primo Ribeiro.., eu
nunca tive coragem p’ra lhe contar uma coisa… Vou lhe contar uma coisa… O
senhor me perdoa?!…
— Chega aqui mais p’ra
perto e fala mais alto, Primo, que essa zoeira nos ouvidos quase que não deixa
a gente escutar…
— Não foi culpa minha…
Foi um castigo de Deus, por causa de meus pecados… O senhor me perdoa, não
perdoa?!…
— Que foi isso, Primo?
Fala de uma vez!
— Eu… eu também gostei
dela, Primo… Mas resp sempre… respeitei o senhor.., sua casa…
Nós somos parentes… Espera,
Primo! Não foi minha culpa, foi má-sorte minha…
— Não teve nada,
Primo!… Juro!… Por esta luz!… Nem ela nunca ficou sabendo… Por alma de minha
mãe!
Furioso Ribeiro o expulsa dali. De tão arrasado pela malária
Argemiro é confundido pelos pássaros com um espantalho. Apesar de mais morto do
que vivo Argemiro ainda consegue ver em seu entorno as flores azuis da mesma
cor do vestido de Maria Luiza...
O cenário do conto é desolador. O arraial sem moradores, as
casas abandonadas, as terras sem nenhum valor e a malária que consumia a todos.
A falta de assunto dos dois primos é impressionante, mas também não poderia ser
diferente num lugar quase assombrado onde nada acontece além da ameaça
constante da morte. Num trecho do conto podemos observar essa conversa
entrecortada e vaga sobre quase nada:
Primo Argemiro
espera um pouco. Aí, ele se espanta. De há muitos anos, dia trás dia, tem a
hora do perdigueiro dormir ali perto, e a horinha do perdigueiro sacudir as
orelhas, que é o momento de Primo Ribeiro dizer:
— Vida melhor do
que a nossa…
Para Primo
Argemiro, eternamente, responder: — — E sim…
E, agora, Primo
Ribeiro não falou. Por quê? Ficou mudo, espiando as três galinhas, que ciscam e
catam por ali. Por quê?… Está desfiando a beirada do cobertor, com muita
nervosia de unhas. E preciso perguntar-lhe alguma coisa.
— Será que chove,
Primo?
— Capaz.
— Ind’hoje? Será?
— ‘Manhã.
— Chuva brava, de
panca?
— As vez…
— Dabanda de riba?
— De trás.
Estremecem, amarelas,
as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A
erva-de-anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam,
sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a
mamona, de folhas peludas, como o corselete de um caçununga, brilhando em
verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos
derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.
— Mas, meu Deus, como
isto é bonito! Que lugar bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!… E o
mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.
Imagem de Free-Photos por Pixabay
Que texto rico. Gostei. Parabéns Gabriel
ResponderExcluirUm ombro, um amigo pra destilar as lágrimas suprimida por um choro de desolação. Essa lágrima dou muito.
ResponderExcluirNa verdade, este povoado a que Guimarães Rosa se refere em Sarapatalha, às margens do Rio Pará, é o povoado dos Vilelas. Pertence à Itaguara, mas muito próximo á minha cidade, Cláudio MG. (Se as informações tiverem corretas). Fiquei sabendo quando fiz um vídeo da Festa de Reinado neste povoado e pesquisei um pouco a história local. Fiquei maravilhada... Uma história tão rica mas que poucos têm conhecimento. Infelizmente.
ExcluirMagnífico!
ResponderExcluirConfesso que não consegui ler de uma só vez! Parabéns pela preciosidade padre!
O Pará dos Vilelas é o distrito mais antigo do município de Itaguara. Cenário de várias obras de Guimarães Rosa, o local chama a atenção pelo seu charme interiorano e pela hospitalidade...
ResponderExcluirMarly Olívia poetisa, professora e historiadora de Cláudio
Parabéns
ResponderExcluirBonito
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