Toda casa tem um coração...

 

A frase que intitula esse texto foi extraída do livro “Cidadela”, de Saint-Exupery.  A citação completa é assim:

“Toda casa, seja ela qual for, deve ter um coração – eis a ordem que eu dou. Pessoa que nela more há-de abeirar-se ou distanciar-se sempre de qualquer coisa, há-de poder sair e entrar. Senão, deixa-se de estar em parte alguma. E não há ser livre que não esteja seja onde for”.

É bom lembrar-se que para esse autor a casa é muito mais do que o amontoado de paredes assim como uma determinada propriedade é mais do que um agrupamento de camelos e cordeiros. A sua pátria era “a pátria do seu amor”. Só se pode amar uma “casa que tem rosto”, que tenha um sentido para além do que se vê. O coração da casa de seu pai era uma ala reservada às mulheres, um jardim interno de onde brotava jato de água.  Para Saint-Exupery, não habita o mesmo universo o que habita e o que não habita no reino de Deus. Além disso, era preciso saber algo mais:  E “Tu já não moras mais numa casa se deixas de saber onde o diabo te encontra”...

Quem olha  apenas a estrutura de uma casa  e não os sonhos que ela abriga é como alguém que esquarteja um cadáver e pensa que a vida seja aquele amontoado de ossos, peles e vísceras, quando, na verdade, “a vida era a luz dos olhos que deixou de se ler na cinza deles...”

Sobre o tema “habitação” muita coisa ainda pode ser pesquisada nas obras desse grande autor francês do Séc. XX. Por ora, fiquemos com o que foi colocado.

Tomemos a ideia de que uma casa é mais do que um simples empilhamento de tijolos. Ela carrega história e sonhos, frustrações e alegrias. Ela acaba sendo o retrato das pessoas que por ali passaram ou ainda vivem. Sendo assim, até o nosso lixo fala de nós. A maneira como acondicionamos o nosso lixo pode revelar quem somos. Se o caminhão só passa na quarta-feira, pela manhã, então, não adianta colocar o lixo na rua, na noite anterior. Isso mostra nossa falta de responsabilidade coletiva, pois os cães, certamente, irão espalhá-lo pelas ruas causando doenças e entupimento de bueiros.  As calçadas das nossas casas também falam de nós.  Algumas pessoas varrem, enfeitam as frentes de suas casas e colocam flores nas varandas. Outras deixam tudo sujo, com cacos de vidros e papeis espalhados no chão, causando sérios riscos aos transeuntes. Os nossos varais e os sons que ouvimos também revelam quem somos.

A propósito dessas ideias me pus a questionar: - Se toda casa tem um coração, qual seria o coração da casa onde moro? Essa é uma boa pergunta para você fazer também. Já construí minha casa e ajudei construir mais algumas.  Minha primeira preocupação foi com a biblioteca. Não deveria ser com um cantinho para rezar? – Poderia questionar o leitor, visto que sou um religioso. Digo que não e explico. Esse “cantinho do sagrado” só é possível escolher depois que você está familiarizado com o ambiente. Só após habitar a casa você poderá saber o melhor local para fazer o seu oratório. Como bom mineiro, gosto de oratório e cheguei, inclusive a escrever algo sobre isso. (1)

O “cantinho da reza” não demanda grandes espaços, apenas pede aconchego e silêncio. Ele também deve estar como um “jardim interno onde jorra um jato de água”.  Esse cantinho sempre foi o coração de minha casa. Depois dele vem a biblioteca e a cozinha. Todos esses espaços estão ligados à alimentação. Alimento da alma e do corpo. A gente se alimenta pela oração e pelas boas leituras. Mas, todo mineiro gosta de servir pão de queijo e café com leite para os amigos, diretamente,  na cozinha. Em minha casa não existe uma “sala da televisão”. Sempre achei que ela não merecesse essa dignidade toda. Em lugar disso tenho um “cantinho verde” onde posso cuidar de algumas plantas e, de alguma maneira, me sentir próximo à natureza.

Sua habitação fala de você e de quem você é. Ela não pode ser a “casa da mãe Joana” nem um balaio de gatos, pois cada coisa tem o seu lugar e existe hora para tudo. Penso que, o quarto do casal deveria ser sagrado, pois ele é o lugar de grande comunhão de corpos e corações. Por isso, não deveria ser “invadido” nem mesmo pelos filhos. Os pais são a fonte da vida e como tais devem ser honrados. A mesa das refeições também deveria ser sagrada, pois só sabe o valor do alimento quem já passou fome na vida.

Os tempos mudaram bastante e parece que, atualmente, alguns, mesmo tendo condições, não veem mais valor em se ter casa própria. Preferem viver de aluguel e, se pudessem, jamais cuidariam de uma casa.  Outros, por diversas razões, evitam a própria residência e, praticamente, permanecem fora o tempo todo.  Aos finais de semana, quando estão de folga sequer pisam dentro de casa! Estão longe de criar vínculos com os espaços da casa  a exemplo de  Sérgio Bitencourt, que transformou em música a lembrança que tinha do pai assentado “Naquela mesa”(2). Talvez, não percebam que a casa tenha um coração. Talvez, nem mesmo percebam o próprio coração e o coração daqueles com quem convivem.  Pense nisso!

 

OBS: Esse texto foi escrito inspirado nas páginas iniciais do Livro: Cidadela, de Saint-Exupery.

1-https://ggpadre.blogspot.com/2016/08/oratorio-uma-igreja-dentro-de-casa.html

2- Música: Naquela mesa, de Sérgio Bittencourt, para seu pai falecido, Jacob do Bandolim.

Foto em destaque: https://pixabay.com/pt/photos/%c3%a1rvore-sombra-rio-casa-agua-3321798/