Flagrante

 

O grande autor mineiro, Guimarães Rosa, em seu livro Grande Sertão Veredas, mostra-nos uma fala de Riobaldo, da qual vou me valer, para começar esse texto. O assunto é sobre Deus, um tema recorrente na Obra Roseana. Ele diz mais ou menos assim: Deus, seu moço, é traiçoeiro, uma beleza de traiçoeiro. A intenção do personagem é dizer que Deus nos surpreende o tempo todo em cada curva do caminho, em cada “vereda” desse grande sertão que é a própria vida. O que escrevo agora, bem que poderia ser a ilustração desse pensamento.

Naquele dia, eu não estava muito bem. O sol estava rachando de quente  e a desolação do lugar aumentava ainda mais a minha melancolia. Dentro de mim, um grande sentimento de vazio, embora estivesse ali para cumprir, religiosamente, o meu dever. Sou meio samurai e nunca deixo de cumprir minhas tarefas. Quando começo a ler um livro, ainda que ele não esteja no meu agrado leio-o, até ao fim. Isso é que chamo de “enterrar a faca até ao cabo”!  Valha-me Deus, eu também sou mortal e tenho  direito às minhas idiossincrasias – um  nome bonito para manias mesmo. Mas, voltemos ao meu “tur” inicial. Fazia uma caminhada com a finalidade de capturar algumas imagens. Às vezes, me dou para isso, ser uma espécie de detetive da beleza sem remuneração ou mesmo reconhecimento. Não importa. Cada um tem direito a uma cota de bobagens. Enquanto ia caminhando debaixo do sol, no alto daquela montanha, ouvindo o serrotar estridente das cigarras, minhas ideias “turbilhionavam” um milhão de coisas. Pensamentos nobres se misturavam às latas velhas e arames farpados, coisa de qualquer ser mortal. Nosso pensamento é meio vira-lata. Um vira-lata é assim: você sai com ele para um passeio e ele urina em todos os postes da rua... Esse tipo de cachorro não tem foco!

Meu pensamento, naquele dia, estava mais para um vira-lata. A imensidão do espaço me tornava pequeno e insignificante. Não é bom sentir-se insignificante, pois, na maioria das vezes, a gente se acha insubstituível. Isso faz parte de nosso ego. O cemitério está cheio de insubstituíveis...  No alto da montanha, debaixo do sol, queria estar perto de Deus e, na verdade, sentia uma forma de presença, embora não soubesse explicar bem o que sentia. Até que em certo momento me abaixei para ver qualquer coisa no chão quente. E não é que vi algo profundamente belo? Uma florzinha roxa, cujo nome não sabia  dizer,  roubou toda a minha atenção. Para coroar sua beleza uma abelha fazia carícias em suas petalazinhas delicadas. Não perdi tempo e registrei aquela delicadeza com minha câmera. Isso já faz algum tempo. Hoje a flor não existe mais a não ser na memória de meu computador. Aquela pequena contemplação da beleza me fez desviar todo o pensamento. Lembrei-me da fala de Jesus: Olhai os lírios do campo... Quando dei por mim já estava rezando.  E ali estava eu, sozinho, no alto daquela serra deserta a contemplar uma abelha no seu duro ofício de extrair o doce mel da florzinha roxa e sem nome.

Hoje ao deparar-me com essa imagem (foto em destaque) resolvi pesquisar sobre a florzinha, com ajuda de Gilmar, uma pessoa que também enfeita minha vida. Descobri que a florzinha tem um nome sofisticado: “Chresta scapigera”, um nome digno de rainha.  A plantinha do cerrado de onde brota essa flor ao que parece tem propriedades antimicrobianas e antioxidantes. Mas, isso é tema para os cientistas e pesquisadores.

“Deus é uma beleza de traiçoeiro”, dizia Riobaldo. Hoje atesto que, de fato, isso é uma grande verdade. Naquele dia, Ele se valeu de uma simples florzinha para me arrancar da letargia e do marasmo espiritual. O que vi não foi uma flor foi o dedo de Deus que me acordou para perceber a profusão de vida bem debaixo dos meus pés!

Fotos: Arquivo pessoal