Congado: Espaço de educação e preservação da memória
Minas Gerais foi um Estado, fortemente, marcado pela presença africana. Grande parte dos escravizados procedentes da região do Congo e Ang...
Minas Gerais foi um Estado,
fortemente, marcado pela presença africana. Grande parte dos escravizados
procedentes da região do Congo e Angola vieram trabalhar nas minerações de ouro
e diamante na região de Minas, no período colonial. Aliás, essa atividade
acabou dando nome à região de “Minas Gerais”. As minas de ouro na antiga Vila
Rica, Mariana e a exploração do diamante posteriormente em Diamantina fez com
que grande parte da mão de obra escrava viesse para essas regiões. Ainda hoje,
podemos sentir a influência dessas culturas na língua, na culinária, na religiosidade,
nas danças em quase todas as regiões do Estado.
A Congada, ou “Reinado de Nossa
Senhora”, conforme chamado em determinadas regiões, é uma festa que guarda boa
parte dessa memória ancestral. É um misto de religiosidade e cultura pois, tem
como centro a devoção à Nossa Senhora do Rosário que é homenageada com tambores
e danças à moda africana. Alguns congadeiros resistem à ideia de caracterizar a
festa apenas, como festa de cunho cultural pois, uma festa cujo centro é Nossa
Senhora, não poderia ser vista assim. Nossa Senhora do Rosário é a mãe branca
que adotou os pretos como filhos em pé de igualdade com os brancos.
Em todas as tradições do congado,
ou congada, existe um mito de origem que explica essa aparição de Nossa Senhora
e sua preferência pelos pretos numa época em que eles eram tratados como
animais. Segundo o mito que pode sofrer variações, Nossa Senhora do Rosário,
certa vez, apareceu na praia. Ao vê-la, os brancos tentaram, de todas as formas,
levá-la para uma das Capelas da casa grande. Mas, Nossa Senhora não saiu do
lugar. Os negros então, foram à praia, rezaram e tocaram os seus tambores. Nossa
Senhora os acompanhou e permaneceu na Capela da Casa Grande. Quais as lições
podemos tirar desse mito?
Nossa Senhora falou mais ao
brancos do que aos pretos. Com seu gesto de acompanhar os escravizados ela
mostrou que ama a todos de forma igual. Agindo assim, conferiu uma dignidade
aos pretos, uma vez que, atendeu às suas rezas e não as rezas dos brancos. Por
isso, durante as festas do “Reinado de Nossa Senhora” ela é colocada no centro
e homenageada pelos negros com tambores e batuques. A realidade desigual entre
negros e brancos não mudava muito mas, pelo menos, durante os festejos os
escravos podiam respirar.
Ao lado desse culto à Nossa Senhora, os negros do congado, atualizam ritos ancestrais. Durante os festejos revivem os rituais de coroações de reis e rainhas do antigo Reino do Congo, na África. A festa do congado acontece, principalmente, nas ruas onde, normalmente, o cortejo segue de um local específico até uma Igreja onde se deposita a imagem de Nossa Senhora do Rosário e outros santos negros como São Benedito e Santa Ifigênia com os quais os negros se identificam. O cortejo é formado por grupos mais tradicionais e outros grupos dançantes além do rei, rainha, príncipe e princesa.
O Congado é uma festa católica
onde se cultua Nossa Senhora e outros santos. O ponto alto da festa é uma missa
que pode acontecer antes ou depois de um almoço servido aos grupos locais e
visitantes. Esses grupos são chamados de cortes, ternos ou guardas. A festa
acolhe grupos diferenciados de congadeiros, moçambiqueiros, vilões,
marinheiros, catopés, boiadeiros... Apesar das diferenças no estilo das roupas,
músicas e danças existem entre todos elementos comuns: A bandeira do santo
protetor do grupo, os mastros, os rosários, os instrumentos...
As tradições do congado são
passadas de forma oral, de pai pra filho num espaço de educação onde se ensina
a rezar, a respeitar os mais velhos, agradecer pelo alimento. É também um espaço
de fraternidade e solidariedade pois todos se juntam para fazer a festa ou
mesmo para ajudar um dos irmãos em dificuldades.
Numa sociedade, fortemente,
marcada pelo racismo como a nossa, o congado tem sobrevivido talvez, porque não
se caracteriza como um grupo de resistência e enfrentamento e sim um grupo
religioso. Ainda assim, passa dificuldades pois está ligado a um catolicismo
popular onde muita coisa acontece à margem do oficial e, às vezes, é
incompreendido por isso. A relação do congadeiro está mais, diretamente, ligada
à santa do que à instituições. Ele dança para Nossa Senhora ou São Benedito
para agradecer uma graça ou pedir um favor. Com São Benedito ou Santa Ifigênia
ele tem uma relação fraterna bastante próxima. Com Nossa Senhora a relação é
profundamente respeitosa. Isso não é diferente com relação à Eucaristia. Algumas
guardas que conheço, após as rezas, saem das igrejas de ré, para não virar as
costas ao Santíssimo Sacramento!
É preciso entender que não existe uma única maneira de manifestação da fé. O Congado a manifesta de forma alegre e expansiva. Os seus membros dançam três dias ou mais, debaixo do sol ou da chuva para homenagear Nossa Senhora. Alguns dançam mesmo estando doentes. Não medem sacrifícios para organizarem uma grande festa que, no deserto do dia-a-dia também presenciam o grande milagre da multiplicação do pão. O tempo da festa é um momento de grande auto-estima de quem passa o ano inteiro no esquecimento. Em torno do mastro de Nossa Senhora que liga o céu à terra os congadeiros cantam, dançam e batem seus tambores. No alto da bandeira o menino Jesus sorri quando, no colo da mãe, entrega um tercinho para cada um dos devotos pretos ou brancos, pois diante dele todos somos irmãos.
Fotos: Arquivo Pessoal
Foto Destaque: Guarda de Congo Divina Luz, de São José da Varginha
Segunda foto: Crianças da Guarda Divina Luz
Terceira foto: Reinado de Nossa Senhora do Rosário, de Araújos