Linguiça de vento

  Mal clareava o dia e a gente já estava de pé. Dentro do peito, uma grande turbulência. A alma parecia querer sair pela boca. Havia um mist...

 


Mal clareava o dia e a gente já estava de pé. Dentro do peito, uma grande turbulência. A alma parecia querer sair pela boca. Havia um misto de agitação e adrenalina que fazia a gente ficar inquieto e incapaz de permanecer deitado. 

Era dia de matar porco!  - Meu pai falava matar  um “capadinho”! As palhas da bananeira, sob coberta,  prenunciavam a grande festa. O agito era geral. Até os cachorros pareciam mais  felizes. Meu pai amolava a faca. Uma peixeira que nunca abriu um peixe na vida!  Na verdade, era uma faca curvada e com dentes no meio do fio. Nada que não podia se consertar com uma "fuzilada". Papai afiava a faca e enquanto deslizava o fuzil na lamina movia o maxilar como se comesse a carne do capadinho antes da hora. Este, por sua vez, coitado, dormia feito um justo apesar, dos bichos de pé que abrigava sob as unhas.  Enquanto meu pai arrastava o “capadinho” para fora do chiqueiro uma verdadeira orquestra se formava. Galinhas corriam assustadas com os gritos da vítima; cachorros latiam com alegria; panelas caiam e o frenesi era geral. Um redemoinho de sentimentos turbinavam dentro da gente! Ao mesmo tempo que tínhamos pena do capadinho, sonhávamos com uma carninha no almoço...

A gente nunca sabia se tampava os ouvidos ou corria da cena para não ver o corrimento do sangue. Havia morte, é certo. Mas, embutida na morte, estava a vida que envolvia a casa, de forma imperiosa,  num clima de alegria. Daí a pouco as labaredas subiam. O fogo nas palhas da bananeira lambia o céu após lamber o lombo do porco que, volta e meia, era virado de um lado para outro. O cheiro de carne assada alegrava a manhã de quem quase nunca tinha carne no prato. Depois da “cena do crime” a gente espiava o corpo do capadinho, sapecado pelo fogo e chegava a ter dó do coitado! Isso, no entanto, não impedia que sua cauda (pra não falar nome feio!) fosse disputada pela meninada.  A referida "peça" já estava tostada pelo fogo e servia de tira-gosto ali mesmo! A família era grande e o porco pequeno, mas,   apesar disso, cada vizinho ganhava uma prova de carne. Bastava um porco para garantir a felicidade geral da nação.

Após a desmontagem do bicho, algumas de suas peças eram disputadas à tapas. A bexiga tinha destino certo: Virar bola! Nunca vi coisa igual! Parecia milagre. A gente nunca entendia como uma pecinha muxibenta podia alcançar um tamanho tão grande. As tripas “remanescentes” das linguiças ganhavam muita nobreza para os meninos. Tornavam-se “linguiças de vento”. Mamãe amarrava uma ponta da tripa e, com um canudinho de mamona, soprava do outro lado e amarrava, novamente, com cordão. Era uma linguiça perfeita! Só que de vento. Cheia de vento se parecia às pessoas que, apesar da imagem, não tem conteúdo de nada. 

A bola era cheia de vento e as linguiças também. A pouca carne era, rapidamente, consumida. Hoje, temos linguiças e bolas de verdade. Mas, falta leveza pra gente levar a vida! A felicidade se tornou mais distante e exige mais que um “capadinho” para reinar. Ô vida!

Imagem de Annette Meyer por Pixabay

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  1. Na minha casa passamos por esse momento, mas como morávamos na cidade, o porquinho tornou-se o melhor amigo meu e da Goreth! No dia da sua morte, parecia o velório de um familiar, mas depois da carne pronta, foi saboreada com muito gosto!!!

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  2. Alegria era pouco! Nostalgia plena! Nunca mais voltei a comer uma carne tão sadia. Que saudade daquele tempo!

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