Um salto no chão

  Quisera eu ser poeta para tirar a beleza do lixo. Drumond viu uma pedra no caminho e arrancou dela uma obra clássica. Não sou Drumond, mas...

 


Quisera eu ser poeta para tirar a beleza do lixo. Drumond viu uma pedra no caminho e arrancou dela uma obra clássica. Não sou Drumond, mas, também vejo coisas que me pedem expressão. Hoje, vi um salto no chão, aliás vi dois, um par, a melhor dizer.

 Ao reles do chão, na beira da estrada de um lugar qualquer, havia um salto abandonado. Ele me olhou e começou a chorar pela minha indiferença. Isso porque passei ao largo e não liguei muito para ele. Ato contínuo, vi o seu par, também abandonado como uma alma gêmea desencontrada de sua cara metade. Esse não me pediu nada, apenas, gemeu pois, estava inclinado na relva seca, como alguém à beira da morte. Era morte sim! Uma morte nascida de minha indiferença. Andei alguns passos e retornei. Não podia deixar aquela cena, duas cenas, na verdade, descartadas dos mesmos pés. Não seria eu a descartá-los novamente. Por isso, os fotografei e segui pensando um monte de coisas: A quem teriam pertencido? Imaginei-os, enfeitando os pés de uma virgem em sua noite de núpcias. Ainda existe isso, meu Deus? Quem sabe andou nos pés de uma debutante cinderela na valsa da meia-noite? – Não. Isso também só existe, nos filmes de Hollywood. Talvez, aos pés de uma alma devota seguindo para a Igreja com terço na mão... Pouco provável. Ninguém bota salto alto para rezar.  Quem sabe enfeitaram aos pés da moça que seguiu pelo asfalto com seu rebolado pensando fechar até o Mercado Comum Europeu? Ah, vá saber!

Enquanto matutava com meus botões os saltos estavam ali, simplesmente, atirados, desamparados e desencontrados um do outro. Onde andaria agora a dona daqueles saltos? Estaria viva ou na Cidade dos Pés Juntos? Para esse local ninguém vai de salto. Estaria saltando de um galho para outro feito Tico-tico no fubá? Só Deus sabe! A dona daqueles saltos nem imagina que mesmo em triste abandono eles teriam virado objetos de minha crônica de hoje. Se eu fosse o Drumond, tudo seria bem diferente. Certamente, aqueles dois objetos seriam recolhidos e colocados num museu para visitação pública. Igual ao Drumond, também sou mineiro e, além da “pedra no caminho,” consigo ver um par de saltos que não saltam mais. Estou mais para Manoel de Barros que buscava abrigo no abandono, voava fora das asas e tinha o fado não entender quase tudo, embora sobre o nada tinha profundidades... 


  Fotos: Arquivo pessoal

Related

Crônicas 6265816703394541238

Postar um comentário

  1. Adorei, ótima crônica, não é Drumond , mas é Geraldo Gabriel que consegue dar vida aquilo que não tem mais vida, consegue fazer a gente viajar num texto tão gostoso de ler. Amei, queria descobrir de quem é este salto!!!!

    ResponderExcluir
  2. No meio do caminho tinha um sapato! Tinha um sapato no meio do caminho!!! Kkkkk

    ResponderExcluir
  3. O abandono daquilo que nos pertence, talvez nos mostra a insatisfação do que temos. O salto alto desprendido, talvez seja o desfazer da nossa altura arrogante e voltamos a usar uma simples sandália.

    ResponderExcluir
  4. Tem que ter muita filosofia ,para escrever um texto,sobre um par de saltos separados em uma estrada.Os antigos , principalmente as mulheres submissas, diziam com conviccao:( chinelo ,acompanha o pé)no entender delas, o chinelo era a mulher e o pé era o homem. E eu entrei na conversa e disse: ( é, mas, um dia este chinelo pode arrebentar-se) . Deixando bem claro que a minha opinião era divergente.Esse salto perdido na estrada, padre, deve ser o meu que andou, andou, não arrebentou mas cansou. Kkkkk boa noite.

    ResponderExcluir
  5. Depois de assiistir ao noticiário da noite, que é enxertado de emoções que nos incomodam, conclui que esta faltando é temor a Deus, assim nada melhor de buscar leituras amenas.
    A crônica do Senhor não tem nenhuma pretensão, mas desperta emoções de leveza da vida. O simples olhar em um objeto trás o lado poético que tudo pode se tornar, e nos distrai da dureza de algumas emoções, que hoje digo, foi sentida nos rumos das notícias dadas.
    Termino dizendo. VALEU!

    ResponderExcluir
  6. Quando uma pessoa morre, suas coisas ficam vagando sem rumo até que encontram outras vidas... Nós não temos coisas, as coisas é que tem cada um de nós. O sapato tinha a moça e agora ele tem a estrada.

    ResponderExcluir
  7. Muito bonito este jeito do Padre Geraldo Gabriel escrever, jeito simples e sensível,mas que trouxe vida e curiosidade.História de vida que um dia passou pelo asfalto...Um salto que foi abandonado numa estrada qualquer.Nao importa o dia,o lugar,o ano...O ser humano é inteligente e atencioso, prá gravar na memória,um sinal,um objeto,...que sem companhia ali apareceu,ali ficou!

    ResponderExcluir
  8. Padre Gabriel, quantas beleza e criatividade o Senhor coloca em suas histórias!
    Parabéns 👏👏👏 Amo ler seus textos 👏

    ResponderExcluir
  9. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  10. Padre Geraldo sua crônica traz uma reflexão simples com linguagem acessível, sua mensagem inspira atitude de sensibilidade, muito bom

    ResponderExcluir

Deixe aqui seu comentário

emo-but-icon

Siga-nos

dedede2d

Vídeos

Mais lidos

Parceiras


Facebook

item