Pedras roladas
De saída uma confissão: escrevo com dificuldade que só vendo. O meu trabalho de caneta é pior que trabalho de roçado, uma lavoura dura e s...

De saída uma confissão:
escrevo com dificuldade que só vendo. O meu trabalho de caneta é pior que
trabalho de roçado, uma lavoura dura e suada de não acabar mais. Não recebi de
Deus a tal terra dadivosa e boa em que plantando tudo dá... Além do mais, sou
preguiçoso com firma reconhecida...
(José Candido de
Carvalho em um dos arquivos da Academia Brasileira de Letras).
A confissão acima é de um dos grandes escritores do Brasil,
autor de “O Coronel e o Lobisomem, Um Ninho de Mafagafes cheio de Mafagafinhos
e muitos outros”. Se ele, escritor consagrado e imortal da Academia, disse isso,
pobre de nós, que nem sequer sabemos escrever direito!
Que coisa mais estranha é nossa relação com as palavras na
hora de escrever um texto. Elas são sorrateiras e assemelham-se aos ratos que,
surgem e se escondem, rapidamente, de nós, na penumbra da noite. O escuro é o
espaço dominado pela deusa memória. De vez em quando, tal divindade abre suas
cortinas e deixa a gente vislumbrar no porão de si mesmo o desfile das palavras.
Enquanto não percebidas elas bailam feito garças num voo sincronizado ao cair
da tarde. Uma vez, surpreendidas pelo escritor as garças entram em desordem e
somente com dificuldade ele consegue capturar uma ou outra mais debilitada que
não conseguiu levantar voo na hora do susto.
O escritor mineiro Guimarães Rosa, em “Manuelzão e Miguilim”,
ao falar da arte do velho Camilo em compor versos, mostra um pouco essa
realidade “solerte” das palavras:
“Ele não tirava ideia,
não desinventava. Aprendera em qualquer parte. Aqui e ali, pegara essas lérias,
letras, alegres ou tristes, pelas voltas do mundo (...). Só se a gente guardasse
de retentiva cada pé de verso, então mais tarde era que se achava o querer solerte
das palavras, vindo de longe, de dentro da gente mesmo. – O bicho que tem no
mato, o melhor é passo preto; todo vestido de luto, assim mesmo satisfeito. As
quadras viviam em redor da gente, suas pessoas, sem se poder pegar, mas que
nunca morriam, como as estórias...”
As palavras são “simeis” (no sentido grego de simulacro), por
isso, revelam o ser e o escondem ao mesmo tempo. O ser se “dissimula” na imagem
da palavra. “Imagem”, também é uma palavra grega e quer dizer “fantasma”. Por
isso, a ideia transmitida pela palavra “garça” acaba sendo apenas um fantasma
da garça real. Já me acostumei com esses fantasmas, mas, ainda tenho medo de
trocar a graça da garça pelas penas dos urubus.
Através da palavra o ser parece se revelar de forma diferente
às pessoas. Ultimamente, tenho colecionado um verdadeiro tesouro: o palavreado
do povo! Isso acontece, sobretudo, por causa de minha vivência no rádio. Certa
vez, dando uma receita contra mau hálito, uma ouvinte me premiou com a seguinte
afirmação: Vai ver que o mau hálito é provocado pelo dente cisne! Confesso que
naquela hora fiquei paralisado pensando na beleza da imagem de alguém soltando
cisnes pela boca! Um conjunto de cisnes brotando diretamente das gengivas seria
coisa de outro mundo! O que podemos lamentar foi a confusão do cisne com hiena,
pelo jeito e ela quem gosta de mau
cheiro.
O vocabulário do povo é rico de sentido e carregado de imagens. Ele se assemelha às pedras roladas no leito de um rio. Tais pedras, não passaram por um processo industrial de lapidação e, no entanto, são maravilhosas! Cada um tem o seu jeito de falar e, ao final, todo mundo acaba se entendendo. Nem sempre o que vale é a norma culta. Com esse linguajar do povo também podemos fazer literatura. Há quem prefira construir um castelo com pedras trabalhadas pela indústria e há quem prefira as pedras roladas durante séculos nos leitos dos rios! Muitas vezes, esse é o meu caso! E tenho dito!
Imagem gerada a partir da IA.
Padre acredito que escrever é quase que uma necessidade para algumas pessoas e incluo o Senhor.
ResponderExcluirEscolher um tema, defendê-lo com argumentos, usando a força das palavras é o mais comum.
Hoje o texto do Senhor utilizou de metáforas, fez paralelos, comparações, e explicações que não teve objetivo de nenhum convencimento de ideias, mas teceu um emaranhado de abstrações sobre o encontro de palavras que resultaria ao final na arte da escrita.
Eu concordei com o que li, não lembro onde ou quando, mas dei meu aval "escrever é cortar palavras".
Por fim, termino dizendo que gostei muito da construção deste texto.