Uma casa é sempre mais que uma construção

  Eu não volto mais aqui. Na verdade, nem deveria ter vindo. Tudo ainda está no lugar mas, falta o principal. Ainda vejo o tamborete rasgado...

 


Eu não volto mais aqui. Na verdade, nem deveria ter vindo. Tudo ainda está no lugar mas, falta o principal. Ainda vejo o tamborete rasgado onde a dona da casa gostava de se sentar, o lugar onde se pendurava o chapéu e um resto de galinheiro abandonado no quintal. Mas, não tem mais galinhas, nem chapéus. Secaram-se as plantas no quintal e tudo ficou triste e cinzento. Onde estavam plantados os dois pés de brincos de princesa? Onde estava a enxada virada para cima que servia para ele limpar o barro dos pés? Onde está tudo? Onde estão aqueles que deram vida à casa? Onde foi parar o cheirinho do café coado na hora e do tempero de alho na hora do almoço? Cadê tudo? Cadê todos?

De tudo aquilo que existiu, hoje, só restam paredes carcomidas pelo tempo onde o passado ainda insiste em nos dizer alguma coisa. Talvez, queira lembrar-nos de nossa condição mortal. As paredes ainda teimam em ficarem de pé. Por quanto tempo ainda? No monturo, atrás da janela lateral, onde, “milagravam as flores”, agora passeiam duas lagartixas desoladas sob o sol. Os pés de jabuticabas secaram-se e, junto com eles, morreu também a laranjeira, que fora orgulho da meninada. O que restou de tudo o que existiu? Onde estão a fumaça da chaminé, a água da bica e o rádio ligado ao cair da tarde?

Ouço som de um passado longínquo, percebo rastros apagados na areia, vejo raios desmaiados de um sol que não brilha mais como antes. Uma casa é mais que uma simples construção, é um amontoado de histórias que teimam em sobreviver. Uma tapera, agora é o que vejo e foi só isso que sobrou. Um “isso”, grávido de memórias que resistem à mão de ferro do tempo. Uma casa que abriga o abandono e denuncia nossa condição temporal. Amanhã, também eu, não passarei de vaga lembrança amarelada pelo tempo implacável...

Porque eu vim? Porque voltei? Para ver o que sobrou de minha história; para remexer as cinzas do tempo; para encontrar uma parte de mim mesmo e para ligar os fios de ontem com os de agora, um agora que me escapa e que, o tempo todo, me manda lembranças.

Foto: Arquivo pessoal

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  1. Estamos vivendo este tempo vazio e cheio de memórias. O canto da mesa vazio onde minha mãe se sentava pra fazer as refeições e tomar remédios, o canto da cama onde era pela vida toda o canto das madrugadas de orações. Aqui so se ouve o silêncio e ele por vezes doe. Obrigada padre por trazer neste texto lembranças tão cheias de memórias.

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  2. Alguns tem lembranças, outros ainda vivem essa história. Quando será as lembranças de quem não consegue viver essa historia hoje? Parabéns Padre, que belo texto e relfexão.
    ... neste texto fica aquela expressão:
    - Uns já ouviram falar, Eu já vivi isso lá!

    .

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  3. O texto me trouxe uma sensação de saudade e reflexão sobre como o tempo muda tudo, deixando apenas lembranças do que um dia foi vivido. Obrigado por nos trazer está reflexão. Para um futuro melhor temos valorizar e refletir sobre o passado.

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  4. Só o Amor da sentido... A vida é mesmo um sopro.

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  5. Casa tem cheiro, tem música, tem carinho, tem frestas de sol ,comida gostosas , pessoas especiais, mãos que acolhe ,sorrisos largos , abraços que aquecem.Uma casa aberta é luz é vida é encantamento, já fechada remete saudades, lembranças com um misto de sentimentos ora bons , ora ruins , mas que passaram.CASA É MAIS QUE UMA CONTRUÇÃO FÍSICA, MAS UMA CONTRUÇÃO DE AMOR, CARINHO, ALEGRIA E RESPEITO!

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  6. Ah! Eu conheço essa casa... muitas lembranças vieram-me! Senti uma ponta de dor na alma... já estive aí... minha história fez pousada neste lugar... obrigado por lembrar-me da brevidade da vida...

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  7. Padre, termino de ler, e digo que do começo ao fim, as palavras construiram um texto de muita emoção. Se tivesse que definir um único sentimento escolheria a " impermanência da vida"
    Parabéns.

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