A honra por carregar um par de chifres

  Com o correr do tempo as coisas vão mudando seus significados. O leitor, certamente, ficou impactado ao ler o título desse artigo, pois, n...

 


Com o correr do tempo as coisas vão mudando seus significados. O leitor, certamente, ficou impactado ao ler o título desse artigo, pois, ninguém se orgulha, hoje, de ostentar um par de chifres. Mas, vamos com calma, pois, não quero ofender ninguém.

Na Roma antiga havia um agricultor que, certa vez, foi convocado para servir o exército. O nome dele era Cipo ou Cincinato conforme a narrativa. Voltando a Roma, após liderar uma batalha bem sucedida, parou um pouco para descansar, próximo a um riacho. Ao olhar na superfície do lago viu sua imagem refletida e em sua cabeça havia brotado dois belos chifres. Intrigado com aquilo chamou um sacerdote (arúspice) para interpretar o sonho. O diagnóstico do sacerdote seria o sonho de consumo, de qualquer político, nos dias atuais: Ele seria coroado rei quando adentrasse em Roma!(1).  Perplexo com a notícia resolveu juntar o povo e comunicar-lhe o seu próprio exílio pois não queria se beneficiar do poder.  O senado romano, ao ver o seu patriotismo resolveu doar-lhe uma gleba de terra pública. O tamanho seria medido pelo que ele pudesse arar durante um dia inteiro. Além disso, mandou esculpir uma cabeça de homem com dois chifres para ser colocada nos muros da cidade. Com isso visava perpetuar aquele bom exemplo de quem não quis dar uma espécie de golpe de estado.

Ao ler esse relato tornou-me impossível não compará-lo com situações de nosso tempo. No dia da invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em janeiro de 2021,  havia inclusive, um manifestante, que usava uma peruca de touro na cabeça. Mas, ao contrário de Cipo que, após ajudar o estado, retomou à sua rotina de agricultor recusando todas as honrarias, aquele manifestante queria mesmo era dar um golpe na democracia. Se boa parte de nossos políticos usam chifres deve ser por outras razões e não por amor à pátria...

Em Roma, mais uma vez, citando a cidade eterna,  existe uma famosa estátua de Moisés, com chifres, uma obra-prima de Michelangelo, fica na Basílica de San Pietro in Vincoli (São Pedro Acorrentado). Diante da estátua muita gente fica sem entender porque um grande legislador como Moisés ostenta aquele enfeite na cabeça. Pelo visto, isso ocorreu devido a um erro de tradução da palavra “qaran” que no hebraico quer dizer “radiante”( Ex 34, 29-30). Tal palavra  compartilha a mesma raiz com outra parecida “qeren” que quer dizer “chifre”. No hebraico moderno, a palavra que se refere a um raio de sol é qeren, como se falasse de "chifres do sol". Ao  traduzir a Bíblia para o latim, São Jerônimo descreveu o rosto de Moisés como cornuto, ou seja, "chifrudo", em vez de "radiante"(2) Seja como for, a situação não deixa de ser embaraçosa dado o significado da palavra “chifre” no mundo de hoje.

Esse texto nasceu em homenagem ao “Zé Manguaça”, meu velho conhecido e frequentador da boemia  local. Outro dia, estando com a vista embaçada viu-me fazendo a caminhada de sempre e, do nada, proclamou em alto e bom som: Pois é, sô padre, chifre foi feito para o homem, o boi só usa de atrevido! Valha-me Deus!

 

1-      Kury, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana, 8º edição. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.

2-      https://pt.aleteia.org/2021/08/25/por-que-a-estatua-de-moises-de-michelangelo-tem-chifres/ - Consulta em 23/12/25

Imagem de martins2018 por Pixabay

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  1. Um relado que passa por informações interessantes e termina com um leve humor.
    Aproveito para refletir sobre a ganância, a falta de escrúpulo de muitos políticos. Um par de chifres poderiam ser um presente, uma identidade que ganhariam por serem infiéis aos seus representados, quando agissem contra eles.

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