Sonho de anjo

Ele se chama Jorge Henriques e deve ter menos de dois aninhos. Sua mãe o puxava com uma das mãos e com a outra puxava a irmãzinha durant...

Ele se chama Jorge Henriques e deve ter menos de dois aninhos. Sua mãe o puxava com uma das mãos e com a outra puxava a irmãzinha durante a procissão da Senhora das Dores. Jorge, certamente, não entendia nada do que estava acontecendo e, provavelmente, não fazia a menor ideia da direção para onde caminhava toda aquela gente atrás da imagem da Virgem Maria. Mas, como toda criança, devia estar gostando de ver aquela “muvuca” toda. Os meninos mais crescidinhos brincavam, com medo, dos olhares de censura dos adultos. Definitivamente, adultos não entendem crianças! Já pensou que ótimo lugar para se esconder entre tantas pernas e a pouca luz das velas? 
Os cachorros também acompanhavam o cortejo, com pouca devoção e muita disposição para brigas. Todos pareciam disputar uma cadelinha esguia, que há pouco, aparecera na praça. Cada um procurava se empinar mais o flanco do que o outro para chamar a atenção da “moça”. Os menos escrupulosos abanavam o rabo de forma agitada num profundo desrespeito para com o andor da santa.
Nossa Senhora que tudo via, atrás das lágrimas chorosas, viu também quando Jorge tropeçou três vezes. Aquilo deve ter lhe trazido amargas lembranças, pois seu amado filho também andou tropeçando no caminho do calvário. Assim como a santa, a mãe de Jorge pouco podia fazer. Se carregasse um filho a outra reclamava. Carregar os dois parecia algo impossível... Então apareceu um Cirineu. Ele apanhou o menino, carinhosamente, e o pôs sobre ombros. A procissão continuou. O som das rezas foi ficando mais distante até que desapareceu por completo... Jorge dormiu feito anjo nos ombros de um adulto que também seguia a procissão. Enquanto a imagem era carregada para seu destino, Jorge era transportado para os braços de Orfeu. O céu cobria de estrelas os sonhos do menino.  Jorge fez de travesseiro a cabeça do adulto sob a qual se inclinara ao ser vencido pelo sono. 
O tempo vai continuar passando e outras procissões acontecerão. Jorge, provavelmente, se esquecerá daquele instante único e mágico. Pode ser que com o tempo alguém se lembre do fato. Mas, a Mãe de Jesus nunca se esquecerá de Jorge. Na verdade, foi ela quem o carregou através de terceiros. Fez com Jorge o que gostaria de ter feito a Jesus no caminho do calvário.  Dizem os mais atentos que a Santa parou de chorar quando alguém deu a mão ao menino. Outros afirmam que ela chegou a virar o rosto em direção a outros meninos caídos no trajeto. O que há de verdade em tudo isso só Deus o sabe. 
Devo confessar que tive uma pontinha de inveja de Jorge. Imaginei que eu pudesse fazer o mesmo com Jesus e na hora do cansaço me debruçar sobre seu ombro coçar seus cabelos e cochichar em seu ouvido... Mas, para ser bem sincero, acho que isso já aconteceu comigo. Se ele não tivesse me segurado pelas mãos, provavelmente, eu já teria caído um milhão de vezes...

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