Aos negros: Castigo!

Dom José Maria Pires, em seu sermão, na Missa dos Quilombos, rezada em Recife em novembro de 1982, chegou a afirmar: Mais longa d...



Dom José Maria Pires, em seu sermão, na Missa dos Quilombos, rezada em Recife em novembro de 1982, chegou a afirmar:

Mais longa do que a servidão do Egito, mais dura do que o cativeiro da Babilônia foi a escravidão do negro no Brasil. No Egito, como na Babilônia, os hebreus foram submetidos à dura servidão. Puderam, entretanto, conservar sua consciência de povo e sua dignidade de pessoas. O africano ao contrário foi desenraizado de seu meio e separado propositalmente de sua gente, de sua família!(1)

A fala do bispo nos faz refletir sobre a condição desumana do escravo negro no Brasil. De fato, ele não era visto como gente e sim como “peça”. Sendo assim, não era  senhor de direitos. As leis daquele tempo em nada lhe favoreciam. A legislação, antes portuguesa, depois imperial, recomendava “evitar excessos”, na punição aos negros, mas não definia o que seria esse “excesso”. Para viabilizar a recomendação, o rei português autorizava denúncias de religiosos contra crueldade no trato dos negros e até mesmo reclamações dos próprios negros (2). Para os donos de escravos, eles eram vistos como propriedade, como coisas e não como seres humanos. Dessa forma, descumpriam qualquer lei que visasse protegê-los. Caso, alguns morressem durante os castigos o prejuízo seria apenas econômico...

No Brasil nunca existiu algo como um “Código Negro”, como em outras partes da América. Mas, mesmo em outras partes, como na Ilha de Martinica, onde havia o “Código de Martinica”, o senhor de escravos podia até queima-los, vivos, desde que pagasse uma quantia de sessenta libras (3). Apesar da documentação escassa no sentido de proteger o escravo, o governo organizou a tortura para evitar o que podemos chamar de “acidente de trabalho”, ou seja, a morte do escravo durante os castigos. Castigar o escravo era um trabalho do carrasco e ele recebia por isso. No Rio de Janeiro, os açoites passaram a ser aplicados entre nove às dez horas da manhã. Um verdadeiro ajuntamento de gente comparecia para ver a cara dos condenados. O público chegava a manifestar preferência por esse ou aquele carrasco. Alguns eram mais hábeis em manejar o chicote diante do pelourinho. Agindo assim, o governo impedia que os escravos fossem castigados clandestinamente. Os açoites eram públicos, assim como uma espécie de "diversão" para o povo...

A partir da uma notícia de um jornal da época Arthur Ramos fala sobre o castigo aplicado a uma criança de dez anos de idade no Estado da Bahia:

“Trazia ao pescoço uma enorme gargalheira de ferro que pesava quatro quilos (...) o pescoço da criança estava em carne viva de tal maneira que ela mal podia andar (...) trazia nas nádegas sevícias recentes feitas pelo bacalhau (chicote) (...) pulsos e tornozelos apresentavam sinais de terem carregado o tronco (instrumento de tortura) de campanha! Outra criança, um ingênuo, menor de quinze anos, maltrapilho, imundo, excessivamente emagrecido, com o corpo coberto de queimaduras, escoriações e cicatrizes, invadiu a casa do Juiz de Direito de Feira de Santana, suplicando que não o mandasse de volta ao seu senhor. A criança foi entregue ao delegado de polícia que mandou chamar o senhor e entregou-lhe o ingênuo recomendando que lhe aplicasse uma surra a fim de que o fedelho não se animasse mais a ir procurar  juízes... (4).

Durante o período da escravidão, diversas modalidades de castigos foram aplicadas aos escravos. Ao que parece, foi Arthur Ramos o primeiro estudioso do assunto a classificar essas modalidades. Em seu livro, "A Aculturação do Brasil", ele aborda, de fato, inúmeras formas de castigos aplicados aos escravos no Brasil e em outros países da América. Quanto aos instrumentos de torturas usados na escravidão, Ramos os divide em:

Instrumentos de captura ou contenção: Correntes, gonilha, gargalheira, tronco, vira-mundos (troncos de ferro), algemas, machos, cepos, correntes e peia;

Instrumentos de suplício: Máscaras, anjinho*, bacalhau, palmatória;

Instrumentos de aviltamento: Gonilha, libambo**, ferro para marcar, ferro com inscrições aviltantes (5).

Em se tratando de castigar os escravos nunca faltou criatividade aos seus donos. O sadismo e a perversão chegaram ao extremo! Os donos de escravos criaram o “novenário” ou “trezenário”. Conforme “a infração” o escravo era açoitado por nove dias ou treze dias seguidos. Ao final desse ritual macabro, muitos não resistiam. Na aplicação do castigo, não havia muita distinção entre homens, mulheres ou até mesmo crianças. No caso, das crianças precisamos escrever outro texto!  Para os açoites, o escravo era amarrado, de bruços, e apanhava tanto que suas costas ficavam em carne viva. Após a surra eram ainda eram banhados com salmoura. Muitos escravos ficavam definitivamente deformados. As escravas mais belas costumavam ser castigadas por isso. Sendo assim, despertavam ciúmes da mulher branca que, por ser feia, tinha medo de ser traída pelo marido.

Refletir sobre a escravidão é reconhecer a dívida histórica que o Brasil tem para com o povo africano que desembarcou por aqui, na condição de objeto e, mesmo assim, ajudou-nos, a construir essa nação sob o peso do chicote. Pense nisso!

*Anjinho: Instrumentos de suplício que prendiam os dedos polegares da vítima em dois anéis que comprimiam, aos poucos,  por meio de uma pequena chave ou parafuso

** libambo:  Instrumento que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde saía uma haste longa, também de ferro, que se dirigia para cima ultrapassando o nível da cabeça do escravo.

Fontes pesquisadas:

1 – Anizio Ferreira dos Santos, Pe (Org). Eu Negro: Discriminação racial no Brasil existe? São Paulo, Loyola 2000, PP 30.

2- Pinsky, Jaime. A Escravidão no Brasil. SP, Contexto, 1998. PP 46.

3------------------ A Escravidão no Brasil. PP 47.

4, Ramos Arthur. A Aculturação Negra do Brasil. SP. Cia Ed. Nacional, 1942, PP. 113.

5, ----------------, PP. 109 -110

Imagem de JamesDeMers por Pixabay 

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  1. Ainda bem que temos Padre Gabriel para publicar sobre esse tema que muitos preferem não publicar nos livros didáticos e alem de alguns ignoraram esse tema. ÁFRICA ESCRAVOS negros.

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  2. A história humana está cheia de perversidade.Somos seguidores de homem Deus que veio de um povo que foi escravo. Que sofreu horrores antes de morre,e nos ensinou a perdoar, mas esquecer nunca. As marcas da escravidão negra perdurará para sempre.

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  3. Parabéns Padre Gabriel pela coragem e carinho ao escrever a realidade sofrida pelo negros africanos. Amo esse tema, que é pouco divulgado pelos escritores!

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  4. É lamentável. Porém parte ou íntegra do nosso passado foi essa regra de alguma raça pagar o preço de um regime que até hoje não foi corrigido. Jamais pelo que vejo, não seremos anti-racista. Belo texto, Bela escolha de tema

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  5. Parabéns padre pelos textos que publicar com serteza têm que ter muita coragem pois é uma história de crueldade tão grande que chega doer de saber que ainda existe tanta desigualdade por cor da pele minha mãe erá negra e sei como sofreu com isso.Deus abençoe sempre

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  6. Sempre sensato em suas palavras. Apesar de ser uma vergonha para nosso país, a escravidão deve ser sempre lembrada para que jamais volte a acontecer.

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  7. Excelente reflexão. Além da dívida que temos aos negros,fiquei pensando, quais são aqueles que junto aos negros vivenciam sua escravidão diária. Que Deus me ajude a ter SABEDORIA e a desvendar meus (nossos) olhos para não repetir,seja por atos velados ou claros, o que fizeram (fazem) aos nossos irmãos mais necessitados e oprimidos, definidos hoje pelo que tem e não pelo que são.

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  8. Parabéns Pé. Gabriel pelo texto! É dolorido imaginar quanto sofrimento os negros foram submetidos. Impressionante como até hoje às pessoas são julgadas pela cor da pele. Lamentavelmente, muitos ainda sofrem punições de alguma forma.

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  9. Infelizmente, muitas pessoas ainda carregam o preconceito e exclusão dos nossos irmãos que tanto sofreram...

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  10. Realmente,custamos a acreditar em tantas crueldades e castigos sofridos pelos escravos aqui no Brasil. Dói muito, e fico pensando se esses ditos "senhores" conheceram Jesus de Nazaré ...

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  11. A escravidão no Brasil é a pior vergonha de um passado cruel,de uma Colonização que mais explorou que colonizou. O Brasil tem uma dívida enorme com o povo negro, e as cotas para os negros é o mínimo de recompensa aos nossos irmãos.

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