Roubar da cana a doçura do mel...
Trago bem vivo dentro de mim o gosto pelo caldo de cana que, em criança, chamava de “garapa”. No maior calor do dia a garapa adoçava nossa...
Trago bem vivo dentro de mim o gosto pelo caldo de cana que, em criança, chamava de “garapa”. No maior calor do dia a garapa adoçava nossas vidas e fazia a gente pensar que a vida valia à pena. Em quase todos os quintais havia uma moita de cana. Elas serviam para tudo: alimentar o gado, fazer rapaduras e produzir garapas, é claro! Jamais me esqueci do verde sabor da garapa! Naquele tempo eu não imaginava que da cana se produzia cachaça, uma espécie de “garapa destilada” que tirava a pessoa do salto. A gente ficava só com a garapa mesmo. Meu pai batia na cana com um pedaço de pau e a torcia sobre um prato. O caldo escorria, milagrosamente, dos gomos e alimentava uma grande disputa entre os pequenos consumidores... Nos restos do bagaço não demorava muito para juntar abelhas, que num enxame frenético, buscavam adoçar também, as próprias vidas.
Na música “Cio da Terra” de Chico Buarque, composta por Milton Nascimento, vejo contemplada parte de minha infância, sobretudo, quando diz: “Decepar a cana, recolher a garapa da cana, roubar da cana a doçura do mel, se lambuzar de mel”... Havia algumas espécies de canas mais doces que outras. Meu pai elogiava a “Caiana”. De vez em quando, descascava alguns pedaços dela. Tirava-lhe, os nós e dividia os gomos em quatro pedacinhos. Era o céu! A meninada desfilava diante daquele banquete de doçura sem a mínima preocupação com cárie dentária.
O Brasil nasceu à sombra do canavial. Muito antes do ouro o açúcar brasileiro adoçou as mesas do mundo. Dizem que a rainha da Inglaterra ficou com os dentes todos careados de tanto comer do açúcar brasileiro que, naquele tempo, valia ouro. Hoje está na moda falar mal do açúcar. Ele se tornou o vilão e a fonte de todos os males. Não se pode mais dar balas às crianças e muito menos um copo de “caldo de cana”. Caldo de cana é um nome moderno para a velha garapa.
Devo confessar que outro dia cometi um verdadeiro desatino. Foi na rodoviária de Belo Horizonte. Ao aproximar-me do barzinho vi que servia “caldo de cana”. Então pensei: É hoje! Pedi logo um copo duplo. Um tipo “desmancha prazer” me rosnou: - Olha o colesterol, heim! Se ódio matasse eu teria fulminado o boca de coruja ali mesmo. Ele não sabia que aquele era um raro prazer de encontro com minha infância... Por alguns momentos fui transportado! Vi meu pai batendo no pedaço de cana, vi Zezé com o cabelo arrepiado estendendo um copo, e toda a galera reunida para a festa. Não. Definitivamente, ninguém tinha o direito de acabar com aquele momento mágico!
Em minha casa nunca faltou uma boa rapadura. Não existe doce melhor. Após o almoço, um “toquinho” de rapadura é sagrado. Esse ritual se repete há 57 anos. Até hoje não morri por causa dele. Já tenho paladar apurado para rapaduras. Sem quais são as boas e as que não prestam. Mas, na falta da boa vai a ruim mesmo! É chique demais! Não costumo falar muito desse hábito para não despertar inveja. Na minha sobremesa nunca faltou esse legítimo produto brasileiro. Consumido após um café amargo, fica ainda melhor. Qualquer dia desses vou convidá-lo para esse banquete. Não se assuste se você tiver uma experiência do céu antecipada...
Imagem de Joseph Mucira por Pixabay
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.."O Brasil nasceu à sombra do canavial. Muito antes do ouro o açúcar brasileiro adoçou as mesas do mundo"...
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