Os ciganos

  Era uma tarde como outra qualquer se não fosse uma tímida chuvinha daquelas “molha bobos” que refrescava o final do dia. Daí a pouco parar...

 


Era uma tarde como outra qualquer se não fosse uma tímida chuvinha daquelas “molha bobos” que refrescava o final do dia. Daí a pouco pararam, frente à nossa casa, dois ciganos, montados em seus cavalos, com muitos colares no pescoço e alguns dentes de ouro nas bocas. Cigano, naquela época, parecia um ser de outro mundo! A gente nunca sabia qual era a “linhagem” deles. Meu pai sempre se preocupou com esse negócio de linhagens e parentescos. Lembro-me, de certa vez, quando parei com ele num posto de gasolina, que mais parecia uma rodoviária, em Bom Despacho e, daí a pouco, o vi puxar conversa com um desses viajantes que vem não sei de onde e vai não sei pra onde. Na conversa, meu pai o interrogava sobre os seus pais, avós, bisavós... Adão e Eva, para ver se tinha algum parentesco com aquele vendedor. Antes de chegar a Abraão, ele descobriu um sobrenome comum, um “Silva” qualquer, entre ele e o tal viajante. Depois disso, meu pai pagou até cafezinho para ele e eu fiquei ali, sem saber o que falar com o mais novo “parente” descoberto quase que por acaso.

Qualquer cigano que chegava a nossa casa sempre pedia um copo d´`água. Aquilo era um pretexto para puxar conversa. Conversa que, quase sempre, variava entre cavalo, mulher, revólver, tacho de cobre e “tirar” a sorte...  Não deixava de ser algo interessante para nossa vida, vazia de assuntos e novidades. Lembro-me, de certa vez, quando dois ciganos chegaram a nossa casa ao cair da tarde. O cigano mais velho foi logo ao assunto que o trouxera ali: - Olha, patrão (meu pai nunca foi chamado de patrão por ninguém...), enquanto, estávamos vindo pra cá, minha avó caiu do cavalo, quebrou o braço e entortou a bacia... Nós precisamos urgentemente de um lugar para pouso essa noite. Peço sua caridade para deixar a gente montar duas barracas naquela baixada só até o romper do dia. Amanhã seguiremos viagem...  Meu pai amoleceu o coração. Como deixar uma idosa, com o braço quebrado e a bacia torta, em tão delicada situação? Autorizou logo o pouso dos ciganos. A noite caiu e a gente nem viu quando a velha da bacia fraturada chegou. No outro dia, tivemos uma grande surpresa. Havia nada menos, do que dez barracas no campinho e uns cinquenta cavalos no pasto! Em torno do acampamento milhares de crianças, mulheres e jovens. Era uma “zueira” só! Da noite para o dia apareceu quase uma cidade naquele local, onde antes, nem cigarra cantava.

Ao perceber que fora enganado, meu pai virou uma onça! Pegou um facão e foi tirar satisfação com os ciganos. Afinal, o nosso pasto, mal dava para um cavalo da família e alguns bezerros que possuíamos. No acampamento dos ciganos só havia mulheres e meu pai não achou nenhum dos homens para conversar. Além do mais, aquilo era assustador, pois as mulheres conversavam tanto que mais parecia um enxame de abelhas alvoroçado.   Não havia o que fazer. A vizinhança até gostou e andou presenteando os visitantes com algumas galinhas gordas. Afinal, havia uma idosa enferma entre os forasteiros!  Ao cair da noite muitas pessoas compareceram ao acampamento para “tirar a sorte” com as ciganas. As previsões quase sempre agradavam: - Você vai se casar com um príncipe, minha filha! Mas, não precisa apressar, pois quem apressa come cru... Você vai comprar um carro novo e mudar-se para a cidade. Não se preocupe se isso demorar um pouco para acontecer, pois o que é do homem o bicho não come... E por aí se vai... Cada consulta tinha um preço. Mas, quem não gostaria de saber um pouco sobre o futuro, não é mesmo? Até a chegada dos ciganos o futuro não era uma palavra conhecida por ali... Ainda bem que as ciganas não previram a morte de ninguém! Então, estava tudo certo com aquele futuro cor de rosa previsto na leitura das mãos calejadas de minha gente.

No sexto dia do acampamento, vi a decepção do meu pai se transformar em alegria em menos de meia hora. Três ciganos vieram conversar com ele. No início da prosa meu pai estava azedo. Mas, os ciganos lhe disseram: - Olha patrão (patrão, mais uma vez!), nós só atrasamos um pouco por aqui porque queríamos ter uma certeza. Uma das nossas mulheres está grávida e, brevemente, será mamãe. Viemos aqui para convidar o senhor para ser padrinho da criança, pois nunca vimos um homem do coração tão bom! Diante desse convite inusitado, meu pai se desmanchou todo. Pediu minha mãe que preparasse um café forte para os novos compadres. Foi só beijos e abraços! Os ciganos foram embora deixando para trás boas lembranças. A idosa com fratura na bacia ninguém viu. Quanto ao afilhado, meu pai estaria esperando por ele  até hoje se não tivesse morrido. 

Ô povo bão de prosa, sô!

Obs: Registro aqui, todo o meu respeito e admiração ao Povo Cigano, que sempre sofreu muitos preconceitos ao longo da história. 

Imagem de wendy CORNIQUET por Pixabay 

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  1. Kkkkkkk, o povo bão. O pai do meu ex patrão comprou um cavalo de um cigano.na compra pergunta só cigano se o cavalo é bom, o cigano respondeu que o defeito estava na vista. O cavalo lindo foi comprado, só que era cego. Kkkkkkk

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  2. Sensacional, até hoje vemos pessoas como os ciganos da crônica prometendo algo que jamais irão cumprir e pessoas que gostam de ser exaltadas e bajuladas.
    Muito boa!

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  3. Os ciganos mantém viva uma tradição de muitos anos de caminhada. São defensores da família e vivem uns para os outros. São católicos de nascimento e têm Santa Sara como protetora.

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  4. É essa bagagem que devemos carregar do passado. Histórias como essas nos permitem sentir-se milionários. Cada dia que passa meu amigo, tenho mais convicção de que riqueza maior não há, que essas memórias em nossas vidas. No caso, as do Senhor, as transforma em crônicas para fazer nossa imaginação trabalhar.

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  5. ..".. Você vai comprar um carro novo e mudar-se para a cidade. Não se preocupe se isso demorar um pouco para acontecer, pois o que é do homem o bicho não come..."..

    Consola!

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  6. Essa estória poderia ter acontecido em Itapecerica, lugar que recebia muitas comitivas de ciganos em tempos passados.

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  7. Conto bom de ler e apreciado porque muita verdade se mostra sim na vida desse povo nomade que ludibriam para sobreviver.
    Tenho também respeito e até compaixão por uma escolha de vida muito sofrida, afinal quem pode ter um porto seguro vive melhor.
    Confesso que já fui enganada pela visita de ciganos no meu bairro ao comprar um conjunto de panelas horríveis, e que me pareceu inicialmente uma bela compra.

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  8. Delícia de se ler esta crônica, como saborear um picolé em dias de calorão como os que estamos vivendo...
    E mais, minha memória afetiva me transportou para os idos de 1960...Sempre apareciam na cidade, alguns ciganos, mas como esses jamais vistos : gente bonita!Minhas amigas e eu ficávamos encantadas com a formosura da mulheres e a beleza dos homens... Ficaram por ali o tempo de nós tornarmos amigas de todos e assistir às festas cheias de músicas e danças...
    Saudades!!!

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    1. Muitíssimo obrigado pelos comentários valiosos. De fato, o tema mexe com nosso imaginário e desperta nossa admiração. Obrigado

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