Campo Geral: Para ler e chorar!

Depois de ler bastante para produzir uma sequencia de vídeos sobre São Paulo Apóstolo, dei-me, ao direito de passear um pouco pela boa liter...

Depois de ler bastante para produzir uma sequencia de vídeos sobre São Paulo Apóstolo, dei-me, ao direito de passear um pouco pela boa literatura brasileira. E por falar em boa literatura, o primeiro nome que me veio à cabeça foi de Guimarães Rosa. Aí, sim! Rosa é “feijão sem bicho”, pensei. Já li mais de duas vezes o Grande Sertão Veredas. Só que faz algum tempo e, por causa disso, muita coisa já me escapou da memória. Então, quis ler algo diferente. Procurei outra obra clássica do autor chamada por ele mesmo de “Corpo de Baile”.

Corpo de Baile não é um livro e sim um conjunto de livros que abrange sete novelas onde os personagens, muitas vezes, conversam entre si. A obra foi pensada para ser publicada num único volume, mas, acabou sendo desmembrada por exigências do mercado editorial. Em Guimarães Rosa nada acontece por acaso a começar pelo número sete. Sete é considerado um número perfeito. Apesar das sete novelas serem independentes elas se interligam de alguma forma, como por exemplo, através dos personagens. Sendo assim, “Miguilim” de Campo Geral volta como “Dr. Miguel,” um médico veterinário, em Buriti. O nome “Corpo de Baile” é bastante ilustrativo numa obra interligada como um corpo único em diversos movimentos. Daí a ideia de baile. A publicação em partes talvez tenha prejudicado essa ideia de unidade. Lendo apenas uma fração não se entende bem o que foi pensado para ser um todo.

Ainda não li todos os romances/contos da obra. Li, Campo Geral, Noites do Sertão com Dão –Lalão e Buriti. No momento leio “Uma História de Amor”, do “Romance” No Urubuquaquá do Pinhém. Para entender melhor os “recados dos nomes” dos personagens li “O Recado do Nome”, de Ana Maria Machado e, nesse estudo também me acompanha o Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant' Ana Martins. Como já li O Grande Sertão Veredas, então, já dá para se ter uma ideia da garimpagem que terei pela frente...

Meu desejo é falar um pouco sobre cada uma dessas leituras começando por Campo Geral. Pensei em começar a escrever depois de ler tudo. Mas, pensei melhor e resolvi ir partilhando com você o que vou desbravando nesse sertão mineiro povoado de Rosas, enquanto as ideias estão frescas na cabeça. Hoje, por exemplo, não terei facilidade em comentar o Grande Sertão tendo em vista que o li faz algum tempo. Então, vamos que vamos!

Campo Geral é um livro que parece destoar um pouco dos outros. Sua leitura é fácil, comovente e emocionante. Nem parece que foi escrito pelo mesmo autor de Grande Sertão Veredas. Campo Geral pode ser lido por qualquer pessoa e, certamente, causará a mesma emoção em todos, pois trata-se de uma história contada através do olhar de uma criança pobre, sofrida e míope. O texto é autobiográfico, segundo os estudiosos de Rosa. Miguilim vê o mundo com uma rara sensibilidade e à medida que vai narrando os acontecimentos miúdos de sua pobre existência vai emocionando o leitor.  Alguns leitores do livro confessam ter chorado muito com as narrativas do personagem.

A família de Miguilim é composta por seus pais Bernardo e Nhanina, pelos irmãos Dito, Tomezinho, Chica e Drelina e Liovaldo, o irmão mais velho que não morava no Mutum. Vô Izidra, na verdade era uma tia avó, era irmã de Benvinda a mãe de Nhanina. Mas, Benvida tinha sido “mulher à toa”.  Tio Terêz teve um caso amoroso  com Nhanina e por isso, foi expulso da casa no Mutum por vô Izidra.  Rosa e Mãitina, ajudavam Nhanina no serviço doméstico.  Mâitinha era descendente de escravos e herdeira da religião dos negros. Por isso, sempre chamada de feiticeira. Pingo de ouro (cadela), Gigão(cachorro de estimação), Rio-Negro (boi que quase machucou Miguilim), Sossõe (gato) e outros bichos também fazem parte do universo mágico de Miguilim.

Diversos personagens vão se integrando na narrativa ao longo do enredo: Seu Deográcias (cobrador/professor...), Patori ( menino mau, filho de Deográcias que acaba se suicidando), Vaqueiro Jé, Grivo (menino ainda mais pobre que Miguilim), Luizaltino que será assassinado por Seo Béro (Bernardo) por ter tido um envolvimento com Nhanina, Dr. José Lourenço (de Curvelo) que descobriu a miopia de Miguilim.

Miguilim parece já ter nascido frágil e  só não morreu na infância porque tomou um banho com sangue de tatu. Sua relação com o pai sempre foi difícil. Na verdade ele o amava menos do que ao Tio Terêz. Dos irmãos o que ele mais gostava era o Dito. Mas, por infelicidade sua Tio Terêz foi expulso de sua casa e Dito morreu de Tétano. Miguilim nem sabia porque o pai era violento com ele. Certa ocasião ficou contra seu irmão  Liovaldo porque ele estava maltratando o Grivo. Por causa disso apanhou tanto do pai que adoeceu. Seu pai quebrou todas as suas gaiolas e soltou seus passarinhos. Com a doença de Miguilim, o pai foi tomado de remorso e suicidou. Tio Terêz voltou da viagem e casou-se com Nhanina.

Certa vez, passou pelo Mutum, um médico muito  qualificado. Foi ele quem descobriu a miopia de Miguilim. Tirou os seus óculos e os colocou em Miguilim. Só então, ele pode ver direito o Mutum. Na verdade ele passou boa parte da vida sem enxergar direito. Por isso, não rendia tanto no serviço e era humilhado pelo pai. Miguilim acompanhou o médico para a cidade deixando para trás o Mutum que marcara para sempre sua infância...

Tomo a liberdade de compartilhar com você algumas anotações que fiz, destacando às superstições que aparecem no conto. 

1, Banho em sangue de tatu para curar fraqueza:

Certo dia que Miguilim levou uma pedrada de um menino grande e o sangue quente lhe escorreu pelo rosto. Isso o fez  recordar-se de uma cena da infância quando, nu sobre uma bacia,  recebeu sobre o corpo o sangue quente de um tatu. Acreditavam que aquilo ajudava a curar a fraqueza do menino...

2, Reza para espantar chuva brava:

Daí deu um trovão maior, que assustava. O trovão da Serra do Mutúm-Mutúm, o pior do mundo todo,  - que fosse como podia estatelar os paus da casa. Corda-de-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água. Molhava o chão. “P’rá rezar, todos!” Drelina chamava. Chica e Tomezinho estavam escondidos, debaixo de cama. Agora não faltava nenhum, acerto de reunidos, de joelhos, diante do oratório.  Até a mãe. Vovó Izidra acendia a vela benta, queimava ramos bentos, agora ali dentro era mais forte. Santa Bárbara e São Jerônimo salvavam de qualquer perigo de desordem... Se o povo todo se ajuntasse, rezando com essa força, desse medo, então a tempestade num átimo não esbarrava? 

3, As rezas de Mâitina e de Vovó Izidra: 

Vovó Izidra quizilava com Mãitina:  - Traste de negra pagã, encostada na cozinha mascando fumo e rogando para os demônios dela, africanos!  Vem ajoelhar gente, Mãitina! Mãitina não se importava com nenhuns, vinha, ajoelhava igual aos outros, rezava. Não se entendia bem a reza que ela produzia, tudo resmungo; mesmo para falar, direito, direito não se compreendia. A Rosa dizendo que Mãitina rezava porqueado:  “Véva Maria zela de graça, pega ne Zesú põe no saco de momabassa...” Mãitina era preta de um preto estúrdio, encalçado, trasmanchada de mais grosso preto, um preto de boi.  Quando estava pinguda de muita cachaça, soflagrava, uma palavras que a gente não tinha licença de ouvir... E daí Mãitina caia no chão, deixava a saia descomposta de qualquer jeito, as pernas pretas aparecendo. Ou à vez gritava: - Cena, Corinta!...” – batendo palmas-de-mão. Vovó Izidra ralhava. E reprovava Mãitina, discutindo que Mãitina estava grolando feias palavras despautadas, mandava Mãitina voltar para a cozinha, lugar de feiticeiro era debaixo dos olhos do fogo, em remexendo no borralho! Vovó Izidra tirava o terço, todos tinham de acompanhar. E ela ensinava alto que o demônio estava despassando nossa casa, rodeando, os homens já sabiam o sangue um do outro, a gente carecia de rezar sem esbarrar...

4, Medo de assombração

Dito começava a dormir de repente, era a mesma coisa que Tomèzinho. Miguilim não gostava de pôr os olhos no escuro. Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher assombrada, senta na barrriga da gente. Se os pés restassem para fora coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé. O travesseirinho cheirava bom, cheiro de macela-do-campo.

5- O arco-da-velha (Arco-íris)  e a mudança de sexo

Entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito, bebedor; quem atravessasse debaixo dele – fú! – menino virava menina, menina virava menino: será que depois devirava?

6, Devoções de Mãitina:

Com a colher de pau, Mãitina mexia a goiabada no tacho: “Fumaça pra lá, dinheiro pra cá... Vovó Izidra, mesmo no escuro assim, avançava nos guardados (de Mãitina), nos esconsos, em buracos na taipa, achava aqueles toquinhos de pau que Mãitina tinha escascado com a faca, eram os calunguinhas, Vovó Izidra trouxava tudo no fogo, sem dó – Eram santos desgraçados, a gente nem não devia de consentir-se  Mãitina  oferecesse aquilo para respeito de se beijar, bonecos do demo, cazumbos, a gente devia era de cuspir em riba.  Mãitna depois tornava a compor outros...

7- Natureza que ameaça de morte...

Mas, porque não cortavam aquela árvore de pé-de-flôr, de detrás da casa, que Seu Deográcias tinha falado? Se não cortassem, era tanto perigo, de agouro, ela crescia solerte, de repente uma noite despassava mais alta do que o telhado, então alguém da família tinha de morrer, então era que ele Miguilim morria. 

De noite Miguilim demorava um tempo distante, pensando na coruja, mãe de seus saberes e poderes de agouro. – “É coruja, cruz?!” Não. O Dito escutava com seriedades. Só era só o grito do enorme sapo latidor.

8- Lobishomem Signo-salomão, insônia de Miguilim.

O Dito já tinha adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O outro herdava os medos, e as coragens (...)  Das almas. Do lobishomem revirando a noite, correndo sete-portêlos, as sete-partidas. Do Lobo-Afonso, pior de tudo Mal, um ente, Seu Dos-Matos Chimbamba, ele Miguilim algum dia tinha conhecido (...) “Seor conhece o Pitôrro?!” E ia crescendo, de desde, transformava um monstro Homem, despropósito. “Não conheço  Pitôrro, , nem mãe, nem pai de Pitôrro, nem o diabo que os carregue em nome de Se’ J’us Cristo amém!...”- O Tropeiro exclamava, riscava no chão o signo-salomão, o Pitôrro com enxofres breus desrrebentava: ele era o “Menino” o Pé-de-Pato. – “Com Deus me deito, com Deus me levanto!” Jaculava Miguilim; e não pegava de ver a ponta do sono em que se adormecia.

9- Jogar o dente sobre o telhado

A Chica também estava esperando: tinha tirado amolecido mais um dentinho de diante, quando estiasse careciam de jogar o dente no telhado, para ela, dizendo: - “Mourão, Mourão, toma este dente mau, me dá um dente são!” 

10, Morte de Patorí

Patorí era um menino mau e levado. Um dia ele, simplesmente, desapareceu. E vai veio uma notícia meio triste: Tinham achado o Patorí morto, parece que morreu mesmo de fome , tornadiço vagando por aquelas chapadas (...) Vaqueiro Salúz disse que era o demônio que tinha entrado no corpo de Patorí.

11, Feitiço para conquistar mulher

O Liovaldo era malino. Vinha com aquelas mesmas conversas do Patorí, mas mesmo piores. – “Miguilim, você precisa de mostrar a sua pombinha à Rosa, à Maria Pretinha, quando não tiver ninguém por perto”. Miguilim não respondia. Então Liovaldo dizia um feitiço que sabia, para fazer qualquer mulher ou menina consentir: que era só a gente apanhar um tiquinho de terra molhada com a urina dela, e prender numa cabacinha, junto com três formigas-cabeçudas. Miguilim se enraivecia, de nada não dizer. Mesmo o Liovaldo sendo maior do que ele, ele achava que o Liovaldo era abobado, demais.

Foto: Pe. Gabriel 
Abaixo: Vídeo do professor Luiz Roncari, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas



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  1. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻Gosto muito de Guimarães Rosa! Vou ler também esses livros.

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  2. Confesso que não consegui ler de uma só vez. Chorei bastante e agora retomei a leitura e ainda vi o vídeo. Parabéns pela maravilha!

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  3. Fiquei curiosa! Gosto de Guimarães Rosa e vou ler essa obra dele também.. Obrigada!

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  4. Agora que estou descobrindo esta literatura de Guimarães Rosa. Li muito, José de Alencar. Estou achando bem interessante e me fez voltar ao tempo de criança, quando a gente jogava o dente de leite no telhado, escutava estórias de lobisomem,estórias do demo, etc. Bom conhecer outras literaturas.

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  5. Meu amigo,é contagiante esta sua paixão pelas leitutas. Abraço

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