Era uma vez, um Burrinho Pedrês
Ao que parece, o nome “burro” não combina mesmo com esse animal. No linguajar comum, burro é pessoa sem inteligência ou incapaz de aprende...
Ao que parece, o nome “burro” não
combina mesmo com esse animal. No linguajar comum, burro é pessoa sem inteligência
ou incapaz de aprender coisas. Mas, quem imagina que o burro seja ignorante
talvez, seja mais ignorante do que o animal. Um burro, quando empaca acaba
tendo suas razões para não assumir a dianteira na trilha. É verdade que “quem
vai na frente bebe água limpa”. Mas, também não deixa de ser verdade que irá
apanhar primeiro dependendo da situação. Nesse sentido, os mineiros nos
parecemos ao tal animal, pois, via de regra, somos desconfiados e nunca levantamos
a mão primeiro; antes a gente assunta, assunta e, só depois, dá um palpite,
pois “quem tem pressa come cru”. Citando provérbios desse tipo e, destilando
sabedoria popular no que escreve, Guimarães Rosa conta-nos, a história do
Burrinho Pedrês. A sensação que a gente tem é que ele está com um “Chip”
implantado na cabeça do burrinho para ler os seus pensamentos. O conto é uma
narração em terceira pessoa.
O Burrinho Pedrês é o primeiro dos
nove contos do “Sagarana”, livro com narrativas ambientadas no sertão de Minas
Gerais. Sete-de-Ouros, o tal Burrinho, já tivera outros nomes: Brinquinho, por
ser inicialmente, brinquedo dos meninos; Rolete, quando ficou acima do peso;
Chico-Chato, que fora o nome do seu sétimo dono; Capricho e, finalmente, Sete-de-Ouros,
pois o seu último dono era viciado em jogo de cartas.
Tudo começou na Fazenda da Tampa,
do Major Saulo para onde o burrinho voltou após ter sido raptado por um grupo
de ciganos. Mesmo com a idade avançada e algumas pisaduras no lombo, acabou tendo
que ajudar a tocar uma grande boiada. Por estar velho e sem forças tornou-se motivo
de piadas entre os vaqueiros que minimizaram sua sabedoria pois, na hora do
perigo era ele quem se dava melhor. Sete-de-Ouros, no entanto, não gostava de
confusão e evitava conflitos. Procurava afastar-se de qualquer cavalo ou boi
destemperados...
Raymundão, um dos vaqueiros da
região, era um bom contador de histórias e, durante a viagem, contou a história
do Touro Calundu que salvou as vacas com suas crias do ataque de uma onça preta.
Certa ocasião, esse mesmo touro matou Vadico,
filho do fazendeiro Neco Borges. Antes de morrer a vítima pediu ao pai que não
matasse o touro. Então, ele foi conduzido por Raymundão para outra fazenda mas
acabou aparecendo morto no curral após berrar a noite toda. Ao que parece, sofreu um ataque de remorsos
por ter matado um adolescente que gostava dele:
“Mas, de noite... Eu pernoitei lá, e vi a coisa sêo Major. Ninguém não
pôde pegar no sono, enquanto não clareou o dia. O Calundú, aquilo ele berrava
um gemido rouco, de fazer Piedade e assustar... Uivava até feito cachorro, ou
não sei se eram os cachorros também uivando, por causa dele. Leofredo, que era
de lá naquele tempo, disse: “Ele está arrependido, por ter matado o menino”.
Partindo da Fazenda da Tampa,
alguns dez vaqueiros foram encarregados de conduzir uma boiada. Nessa “travessia”
aconteceu muita coisa. A viagem se
parece com nossa própria existência onde temos que enfrentar tempos bons e
ruins.
Durante essa pequena Odisséia, ambientada no interior de Minas, os personagens enfrentaram grandes problemas. Depois de uma tempestade eles devem atravessar o Córrego da Fome e essa travessia era muito perigosa. Apesar disso, conseguiram atravessar o Córrego sem maiores problemas. Por ordem de Major Saulo, Francolim trocou de montaria com João Manico. Na verdade, todos os cavaleiros tinham vergonha de montar em Sete-de-Ouros. Montar num burro velho como aquele parecia ofensa ou pouco caso.
Depois de entregarem a boiada e
festejarem até tarde da noite, cada boiadeiro retomou ao seu cavalo para a viagem de regresso. Para Badu que estava muito embriagado,
sobrou Sete-de-Ouros. O que parecia um azar acabou sendo boa sorte!
Os vaqueiros, Badu e Silvino
viajaram juntos apesar de estarem brigados por causa da mesma mulher, pois
Badu, havia tomado a namorada de Silvino uma mulher caolha e de aparência
duvidosa. Essa desavença foi motivo de
preocupações para Major Saulo, o dono da boiada. Major Saulo era astuto e
percebeu que, de fato, Silvino queria matar Badu durante a viagem de volta. Por
isso, encarregou Francolim de cuidar para que isso não ocorresse pois ele próprio não iria retornar com os vaqueiros:
“Francolim, escuta: eu tenho um mandado sério, para você cumprir, com
toda a regra, porque sei que você é o meu homem para isso. Espera. Boca fechada
e olho aberto, na volta Francolim. Eu resolvi ficar hoje no arraial, com a família,
e você vai vir com os vaqueiros, trazendo na algibeira autoridade minha. Olha
lá, Francolim, como é que você arranja essas coisas, sem ninguém desconfiar de
nós...”
Durante a viagem de volta o
Córrego da Fome havia transbordado. Uma terrível enchente inundou todas as
estradas e a noite estava escura. O perigo era iminente. O medo era comum a
todos os boiadeiros. Então, resolveram esperar Sete-de-Ouros, que andava mais
devagar e conduzia Badu que, embriagado dormia sobre o seu lombo. Nessa
hora, lembraram-se, de Sete-de-Ouros era um animal inteligente. Se ele entrasse
na água os outros poderiam entrar também. Caso ele não entrasse, ninguém deveria
fazê-lo, pois “burro nunca entra em lugar sem saída”.
Na escuridão da noite e
conduzindo um bêbado jurado de morte nas costas, Sete-de-Ouros entrou, corajosamente,
na água que borbulhava por todos os lados. Badu, sem governo de si mesmo
abraçara ao pescoço do burro. Os outros boiadeiros entraram na enchente atrás
do burrinho. A força das águas separou Badu de Silvino e, por isso, o crime não
ocorreu. Mas, o que aconteceu foi bem pior! Oito vaqueiros perderam a vida
naquela noite... Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande,
Tote e Sebastião, foram todos engolidos pela força das águas. Somente Badu,
conseguiu atravessar agarrado às crinas de Sete-de-Ouros e Francolim agarrado à
sua cauda. Chegando em terra firme, o burrinho livrou-se de Francolim e
conduziu Badu até a fazenda de onde havia partido.
Sete-de-Ouros, apesar de
discriminado pela idade avançada foi o verdadeiro herói da história. Foi o
único animal que conseguiu atravessar a enchente e ainda salvou dois vaqueiros!
Badu vem ao animal. Verifica se a cilha está bem apertada. Ajeita, por
um caminho de ideias , o seu próprio correão da cintura. Pula de-escancha no arreio, e o poldro – hop’ plá! – esconde o rabo e
funga e desanda, num estardalhaço de peixe fera pêgo no anzol. Se empinou, dá
um de –ancas, se empina; saiu de lado, ajuntando as munhecas, sopra e bufa, se
abre e fecha, bate crina, parece que vais disparar...
Cerca o mestiço da Uberaba. Topa,
Tote! Eh bicho bronco... Chifre torto, orelhudo, desinquieto e de tundá!
Exclamaram os vaqueiros, aplaudindo um auroque de anatomia e macicez
esplêndidas, que avançou querendo agredir. Estampa
de boi brioso. Quando corre, bate caixa, quando anda, amassa o chão!
-Mais depressa, é para esmorecer?! – ralha o Major. – Boiada boa!... Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos,
cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos,
borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do
mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão...
- Eh, boi lá!... Eh-ê, boi!... Tou! Tou... As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo
com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros,
estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado Junqueira,
de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos querência dos pastos
de lá do sertão...
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba,
boi berrando... Dansa doido, dá de duro, dá de dentro dá direito... Vai, vem,
volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...
Pata a pata, casco a casco, soca
soca, fasta vento, rola e trota, cabisbaixos, mexe lama, pela estrada, chifres
no ar...
Deixo aqui uma pequena apreciação
da leitura desse conto. Mas, para ler Guimarães Rosa a gente tem que ser
garimpeiro. A cada releitura encontramos novos tesouros e, por isso, podemos
explorar infinitas possibilidades no mesmo conto. Afinal, como ele mesmo nos
afirma no conto: É andando que cachorro
acha osso!
Imagem de JackieLou DL por Pixabay
Cintia que encantam. Isolamento com boa leitura. Deus abençoe padre Geraldo
ResponderExcluir.."Afinal, como ele mesmo nos afirma no conto: É andando que cachorro acha osso!"..
ResponderExcluirEis uma ótima explicação para que mesmo em tempos de pandemia, tem gente que não sossega em casa!
Parabens
ResponderExcluirAmém
ResponderExcluirGuimarães Rosa é leitura para pessoas que se encantam com suas criações de frases a partir das construções de palavras, que para alguns não é claro no entendimento, e para outros verdadeiros tesouros.
ResponderExcluirTalvez eu tenha ainda meu momento com Guimarães Rosa.