Soropita e Doralda: Uma grande história de amor
Diversas vezes desejei escrever algo sobre esse conto/novela de Guimarães Rosa, chamado “Dão-Lalalão” – O devente. Pelo menos é assim que ...
Diversas vezes desejei escrever algo sobre esse conto/novela de Guimarães Rosa, chamado “Dão-Lalalão” – O devente. Pelo menos é assim que o texto foi intitulado em um dos volumes da Trilogia “Corpo de Baile”. Inicialmente, nos chama a atenção esse título que parece imitar o repique de um sino. O subtítulo “O devente” parece referir-se à situação de conflitiva vivida pelo personagem principal, Soropita, que se sente na obrigação de cumprir as normas de valentia, mas ao mesmo tempo é puxado pela própria volúpia e fantasias sexuais. O conto já foi comparado às grandes narrativas de amor como Eros e Psiquê ou mesmo o Cântico dos Cânticos. Ele nos fala da vida de Soropita, um matador criado no sertão de Minas que se apaixona por Doralda, ex-prostituta de Montes Claros. Apesar de gostar, imensamente, de Doralda que no Andrequicé, era chamada de “Dona Doralda”, Soropita se perturbava ao lembrar-se do tempo em que ela vivia em Montes Claros e, por causa da profissão era “pertencida de todos”. Às vezes, se punha a imaginar como ela teria se comportado com uns e outros e só de pensar nisso se contorcia de ciúmes. Sabia que ela tinha outros nomes ligados à profissão como Dola, Dadã e Sucena. Tinha medo que chegasse algum aventureiro em sua casa e a chamasse por um desses antigos “nomes de guerra”. Para ficar longe de tudo e de todos mudou-se com Doralda para o Povoado do Ão, próximo a Andrequicé. Só ia ao povoado quando precisava fazer as compras. “Doralda, sua mulher, nunca pedia para vir junto. O mimo, Bem, é a regra de primor: “tu cria saudade de mim, nunca tu desgosta”, dizia... Não podia negar a felicidade que Doralda lhe proporcionava, mas o passado dela era para ele motivo de profunda inquietação.
Sempre que Soropita ia ao povoado
trazia um presente para Doralda. Dentro do alforges, estava bem seguro “o presente que ela mais prazia: um sabonete
cheiroso, sabonete fino, cor-de-rosa”. Mas, na verdade, o cheiro de Doralda
é que era bom: “Cheiro que ao breve
lembrava sassafrás, a rosa mogorim e palha de milho viçoso... Seu pescoço
cheirava a menino novo.” Além desse perfume natural ela ainda punha nas
roupas casca-boa e manjericão miúdo.
Quando ela lhe dizia: “Sou sua
mulher, Bem, sua mulherzinha sozinha”, o seu coração quase saia pela boca!
O beijo de Doralda, então, nem fale: “O
cuspe dela, no beijar, tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de
focinho de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira”.
Quem vive longe dessa realidade
do sertão de Minas, certamente, fica
imaginando o que seria um beijo com cheiro de focinho de bezerro! Para
Soropita, que nunca havia beijado antes,
era tudo de bom, pois ele comparava Doralda com o que havia de melhor.
Em seu corpo ele carregava algumas balas e marcas de tiros. Resquício de um
passado que não gostava de lembrar. Hoje ele “nem comia galinha se visse matar. Carne de pouco comia; mas se
podendo, fechava os ouvidos, quando o porco gritava guinchante, estando sendo
sangrado. E o sangue fedia, todo sangue, fedor triste. Cheiros bons eram o de
limão, de café torrado, o de couro, o de cedro...” Doralda passava a mão em
suas cicatrizes, mas nunca indagava nada: “Doralda
repassava as mãos nas grossas costuras, num por uma, ua mão fácil, surpresas de
macia, passava a mão em todo o corpo, a gente se estremecia, de cócega não: de
ser bom, de ânsia. Mel nas mãos, nem era possível se ter um mimo de dedos com
tanto meigo...” Quando chegava a
noite “ o pé dela encostava na perna
dele, debaixo das cobertas: pé assim, liso, branquinho – quente ou frio – ela
nunca tinha andado descalça... e dizia: Tu
põe a mão em mim, eu arrupeio toda. Eu viro água...”
Apesar de gostar perdidamente de
Doralda tinha medo de encontrar alguém com quem ela já havia ficado quando
trabalhou como prostituta. Por isso, evitava encontrar antigos companheiros de
profissão. Sendo assim ficou gelado quando encontrou Dalberto, de forma
repentina. Infelizmente “tudo o que muda
a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar...”. Quase arrependeu
de tê-lo convidado para hospedar-se em sua casa. E se ele reconhecesse Doralda?
E se a chamasse por um de seus antigos nomes?
Só convidou Dalberto porque “um
bom amigo vale mais do que uma boa carabina”. Mas, ainda que ele fosse um
bom amigo, seria capaz de matá-lo se ele bulisse com Doralda. “Doralda era um consolo! Uma água de serra –
que brota, canta e cai partida: bela, boa e oferecida. A gente podia se chegar
ao barranco, encostar a boca no minadouro, no barro peguento, amarelo, que
cheira a gosto de moringa nova, aquele borbotão de água grogolejava fresca,
nossa, engolida”.
Os miolos de Soropita só pararam
de ferver quando Dalberto falou que iria se casar com Analma outra “profissional”
da Rua dos Patos, em Montes Claros. Analma era “um derrame de delícia, uma cuia de água limpa...”. Vê-se aqui que
Dalberto também estava apaixonadíssimo e via Analma, de olhos fino verde, como
se fosse uma avenca-rainha...”.
Após a partida de Dalberto Soropita teve coragem de conversar mais com Doralda sobre o passado dela. Ela falou com ele sobre alguns homens com quem havia ficado. Confessou também ter ficado com alguns homens negros. Foi daí que brotou em Soropita um novo ciúme dela com os negros Iládio e Sabarás. Esses dois homens faziam parte do grupo de Dalberto. Esse grupo foi procurar Dalberto na Casa de Soropita. Ao ver os negros no grupo Soropita não se conteve em seu ciúme imaginário e partir para cima de Iládio. Canalizou contra ele todo o seu ódio e preconceito:
“Ah, negro, vai tapar os caldeirões do inferno! Tu, preto, atrás de
pobre de mulher, cheiro de macaco... – Apeia, negro, se tu não tem caráter! Eu
te soflagro!... Ele declarou. Mas o preto Iládio exclamava, enorme – um grito
de perdão! – rolava de besta abaixo, se ajoelhava: – Tou morto, tou morto
patrão Surrupita, mas peço que não me mate pelo ventre de Deus, anjo de Deus,
não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada!... Tomo benção... Tomo benção...
[...] Mas o preto Iládio deitado na poeira açapado – cobra urutu desquebrada –
tremia de mãos e pernas. “Tu é besta, seô! Losna! Trepa em tua mula e
desenvolve daqui...” – Soropita comandava aquele grande escravo aos pés de seu
cavalo. Igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos”.
A salvação de Iládio foi sua atitude de subserviência, um resquício do tempo da escravidão. Ninguém ali entendeu o motivo de tanto ódio por parte de Soropita. Terminado esse “barraco” ele voltou "pacificado" para os braços de Doralda, pois, ao lado dela a vida podia sempre recomeçar...
Imagem de Here and now, unfortunately, ends my journey on Pixabay por Pixabay
Conheci vários casais iguais a este
ResponderExcluirComo sempre, um texto gostoso de se ler...
ResponderExcluirParabéns, padre.
..."A salvação de Iládio foi sua atitude de subserviência, um resquício do tempo da escravidão. Ninguém ali entendeu o motivo de tanto ódio por parte de Soropita. Terminado esse “barraco” ele voltou "pacificado" para os braços de Doralda, pois, ao lado dela a vida podia sempre recomeçar...
ResponderExcluirPerfeito! Leitura deliciosa!
ResponderExcluirLeio e releio. Sempre tiro uma lição diferente da outra! Parabéns Padre Gabriel!
ResponderExcluirComo gosto de ler seus textos...
ResponderExcluirMt obg por compartilhar
SEMPRE GOSTEI DE LER,MAS ESSES TEXTOS!!! DA FORMA COMO O PADRE ESCREVE É BOM DEMAIS!!!
ResponderExcluirMagnifico. Parabéns
ResponderExcluirÓtimo
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