O que cai da carroça de um cigano...

 

A estória de hoje, me veio à memória por causa desse provérbio popular:

 “O que cai da carroça de um cigano, não pertence mais a ele! É melhor deixar pra trás”.

Antes, porém, de comentar o provérbio vamos à estória, que poderá muito bem, coincidir com tantas outras da vida real:

A mulher de vestido de bolinhas é uma predestinada. Ela se chama “Das Dores”. Em criança foi adotada e abusada sexualmente pelo “padrinho” que a adotou. Sua madrinha quando soube não ficou do lado dela. Na casa onde morava foi explorada e maltratada. Direitos humanos? Nem se pensava nisso, naquele tempo. Lágrimas? Não as tinha mais!  Tornou-se um simples objeto, aquela mulher do vestido de bolinhas. Ninguém a ouvia, ninguém queria saber dela, de sua história e de sua trágica existência. Na adolescência (dor do ser), Das Dores pensou em se matar, mas não teve coragem. Foi então, que lhe apareceu aquele que seria o seu namorado, ou futuro dono. Sem nenhuma autonomia acabou engravidando-se dele e aí passou do purgatório, diretamente, ao inferno! O padrinho a ameaçou e temendo perder a própria reputação disse que mataria a criança tão logo ela nascesse. Nem fugir para o Egito ela podia, pois lhe faltava um José.  O seu “José” também fugiu ao saber da notícia, mas, diferentemente do outro, não foi avisado em sonhos e só voltou quando a criança já estava grande. Num beco sem saída Das Dores fugiu daquela casa, que nunca foi sua, com o tal José. Apenas mudou-se de dono pois, o seu sofrimento continuou em outro endereço.  Não conseguia ter boa intimidade sexual com o marido e isso lhe ocasionava novos sofrimentos gerados pela constante desconfiança dele. Sem ninguém para desabafar o seu drama Das Dores tentou suicídio. Mas, nem isso deu muito certo e ela continuou com sua via-sacra até o dia que Deus permitiu.

O dia de sua redenção, finalmente, chegou. Não era bem um dia. Era noite quando Das Dores, no auge do desespero teve uma visão. Até hoje ela não sabe dizer se foi sonho ou realidade.  Sentindo grande sufocamento no peito apelou à Nossa Senhora Aparecida e pediu para que a Santa lhe tirasse a vida pois, não aguentava mais sofrer.  Então, viu algo como se fosse um lençol baixar sobre sua cama. Na visão aquele pano parecia coberto de estrelas ou pontinhos de luz. Sentiu que a Virgem colocou-se, ao seu lado e lhe pôs as mãos na testa. Instantaneamente a dor no peito sumiu e ela sentiu-se, como se já estivesse no céu. O marido roncava ao seu lado sem nada perceber. Terminada a visão, Das Dores viu-se, completamente, curada. Se pudesse mudaria o próprio nome e em vez de Das Dores chamar-se-ia Das Graças. Guardou para sempre aquele segredo mas, desde então, não reclama mais do passado e não guarda mágoa de ninguém. Anda com leveza e distribui sorrisos a todos. Quem a vê, nem imagina como foi sua infância e sua história de vida. Não carrega mais nenhuma mágoa de ninguém. Um dia lhe perguntei como fez para esquecer tudo o que passou. Então, ela olhou-me, serenamente, e disse: Olhe padre, eu não quero carregar esses pesos pela vida a fora, simplesmente, deixei-os, para trás afinal, estavam me atrapalhando a seguir adiante. Depois, “O que cai da carroça de um cigano, padre,  não pertence mais a ele! É melhor deixar pra trás”.

Confesso que senti uma ponta de inveja de Das Dores. Nem sempre consigo deixar para trás as marcas dos sofrimentos que me atingiram. Ela ensinou-me a olhar pra frente e descortinar novos horizontes. Hoje, sigo com minha carroça e, como um simples cigano, busco uma terra prometida, sem chorar o leite derramado. Afinal, a terra que almejo é a mesma terra, com a qual, alguém já sonhou um dia, uma terra onde corre leite e mel...

Foto em destaque:https://pixabay.com/pt/photos/arco-tampo-de-vag%c3%a3o-cigano-viajante-5315000/

OBS: Com esse texto quero expressar todo o meu apreço e admiração pelo Povo Cigano!