Amor que fere
Ao final do Livro VI – Capítulo XIV, do Tratado do Amor de Deus , São Francisco de Sales afirma que o amor de Deus é capaz de ferir os cor...
Ao final do Livro VI – Capítulo XIV,
do Tratado do Amor de Deus, São
Francisco de Sales afirma que o amor de Deus é capaz de ferir os corações. Ele
inicia a reflexão com a história do pelicano:
Nada custa tanto a um coração
amoroso como ver sofrer de amor por ele um outro coração. “Ao pelicano que faz o ninho na terra, as serpentes vem muitas vezes
morder os filhos. Quando isso sucede, o pelicano, como um excelente médico
natural, fere com o bico os seus filhinhos para lançar fora o veneno que a
mordedura das serpentes lhes derramou em todo o corpo; e, para que todo o
veneno possa sair, deixa correr o sangue parecendo que causa a morte aos
pequeninos pelicanos. Vendo-os, porém, exânimes, fere-se, derrama o próprio
sangue sobre eles, vivifica-os, dando-lhes uma vida nova e pura. O seu amor os
havia ferido; em seguida fere-se a si por este mesmo amor. Nunca ferimos um
coração com a ferida do amor, que não sejamos subitamente também feridos por
ele.”
O que num primeiro momento
parecia maldade, na verdade é um ato de amor pois essa “transfusão de sangue” é
que salvará os filhotes do veneno das serpentes. Por causa da lenda acima, em
algumas igrejas históricas de Minas Gerais encontramos esse tipo de pintura
retratando um pelicano bicando o próprio peito e derramando o seu sangue para
dar vida aos filhotes. A cena aponta para o próprio Cristo cujo sangue
derramado nos salvou a todos.
Para São Francisco de Sales “nada
custa tanto a um coração amoroso como ver sofrer de amor por ele um outro
coração”. Em razão disso, muitos santos chegavam às lágrimas quando
contemplavam a imagem de Jesus preso na cruz. Sentiam verdadeira dor no coração
por verem o coração aberto de Cristo e contemplar suas chagas. Alguns chegaram
mesmo a se oferecer para sofrer com ele como se pudessem, com essa atitude,
aliviar a dor de Cristo. De fato, é preciso ter um coração de pedra para não
ser tocado pelo corpo em chagas de Jesus crucificado.
Como o amor por Jesus pode ferir
e causar dor ao coração? É bem simples. “Algumas vezes, o objeto amado está ausente,
e então o amor fere o coração pelo desejo que excita, e este não podendo
satisfazer-se, atormenta extremamente o espírito.” Quem experimenta, com muita intensidade, o
amor divino não encontrará nada mais na terra que lhes proporcione tamanha
alegria e satisfação. Uma vez experimentado esse grande amor a gente continua
com o desejo de querer sempre mais usufruir dele. E esse desejo do amor nos
causa sofrimento. A mesma abelha que nos pica também nos dá a doçura do mel.
Mas, a picada continua a doer se o ferrão continua preso em nossa pele. Esse
ferrão é o desejo de saciar cada vez mais na doçura do amor. Isso justifica a
oração do salmista: A minha alma tem sede de Deus, quando poderei ver a sua
face?
Essa dor causada pela ausência do
amado também pode ser notada nos escritos espirituais de São João da Cruz. No Canto número 01 ele
afirma:
Onde é que te
escondeste,
Amado, e me
deixaste com gemido?
Como o cervo
fugiste,
Havendo-me ferido;
Saí, por ti
clamando, e eras já ido.
Além, pelas
malhadas, ao outeiro,
Se, porventura,
virdes
Aquele a quem mais
quero,
Dizei-lhe que
adoeço, peno e morro...
Irei por esses
montes e ribeiras;
Não colherei as
flores,
Nem temerei as
feras,
E passarei os
fortes e fronteiras.
Imagem de lbrownstone por Pixabay