Louvar a Deus como um rouxinol

 

Filomela e Procne, personagens da mitologia grega, eram filhas de Pandião I, rei de Atenas. Certo dia Filomela foi violentada por Tereu, rei da Trácia, seu cunhado, casado com Procne. Para evitar escândalo Tereu cortou a língua de Filomela impossibilitando-a de comunicar o fato à sua esposa. Acontece que Filomela era uma grande bordadeira e acabou informando  sua irmã sobre o ocorrido bordando uma mensagem na tela. Ciente do fato, Procne mata o filho do casal e serve sua carne a Tereu. Para escapar da fúria de Tereu ambas pedem ajuda aos deuses que as transformaram em pássaros. Filomela foi transformada num rouxinal e sua irmã Procne numa andorinha.

O rouxinol tem um canto maravilhoso com belos trinados e gosta de cantar ao anoitecer. Quase sempre se esconde entre a vegetação e, por isso, não é visto com tanta facilidade.

São Francisco de Sales (1) cita esse pássaro, para falar como devemos cantar as belezas e a glória de Deus:

“Eis o motivo porque, segundo Plínio, os rouxinóis se deleitam tanto em seu canto. A sua complacência fá-los continuamente gorjear durante dias e noites, porfiando em cantar sempre melhor, ao desafio uns com os outros; de sorte que, quanto melhor gorjeiam mais se deleitam e quanto mais se deleitam mais esforços fazem para melhor chilrear, aumentando com o canto a complacência, e com a complacência o canto de tal maneira , que não raras vezes se tem visto morrer com a garganta rebentada à força de cantar. Estas aves são dignas do belo nome de filomela , pois morrem no amor e por amor da melodia”

Para S. Fco. De Sales, o desejo de exaltar e engrandecer a Deus separa-nos dos prazeres inferiores, tornando-nos atentos às divinas perfeições. A esse bem que se quer à pessoa amada ele chama de benevolência. Nosso amor a Deus, por maior que seja nada pode acrescentar à sua glória. Deus é como o sol e só podemos perceber sua grandeza dentro de nossas limitações. Ninguém consegue encarar o sol de frente. “Se alguém elogiasse o sol por causa de sua luz, quanto mais se elevasse para ele para elogiá-lo mais digno de elogio o acharia, porque melhor veria o seu esplendor. Se é verdade que esta beleza da luz excita o canto das cotovias como é provável, não é grande admiração que cantem mais facilmente, `a medida que mais alto voam, alando-se igualmente em canto e em voo, até que, não podendo quase já cantar, começam a descer, baixando pouco a pouco o voo e a voz”.

Muitos santos, verdadeiramente, apaixonados por Deus, não se cansavam de cantar os seus louvores. “Assim aconteceu ao glorioso e seráfico São Francisco, que tendo sido longamente atormentado por este grande sentimento de louvar a Deus e tendo finalmente em seus últimos anos recebido, por especial revelação, a certeza da salvação eterna, não poderia conter o júbilo, ia-se consumindo dia a dia como se a vida e a alma se fossem evaporando, à maneira de incenso, sobre o fogo dos ardentes desejos que tinha de ver o Divino Mestre para louvá-lo incessantemente”.

Assim como as cotovias  e  cigarras morrem cantando, a alma apaixonada por Deus costuma agir da mesma forma. A morte nada mais seria para elas que o mergulho profundo na beleza suprema de Deus. Para referir-se à morte de um santo poderíamos dizer que a cotovia queimou as próprias asas ao voar em direção ao sol. Oxalá todos nós possamos fazer esse voo um dia! 

 

1-    São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus. Livro V – Cap VIII.