Somos servos inúteis...

 

Para comentar o Evangelho de São Lucas (Lc 17, 7-10), vou me valer de uma afirmação de São Francisco de Sales, sobre a humildade interior:

Porventura as bestas de carga não permanecem animais grosseiros e brutos, embora caminhem carregados de trates preciosos e perfumados dum príncipe?(Filoteia – Parte III, 05).

Pois é. As bestas somos nós. Os perfumes que carregamos é o que recebemos de Deus. A grandeza que ostentamos, de sermos de "filhos de Deus", por exemplo, não vem de nós. Essa dignidade tão grande, entre outras, vem do Pai das luzes. Por isso, é preciso alegrar-se com essa dignidade sem jamais esquecer a fragilidade de nossa condição. 

Instruindo seus discípulos, Jesus os alerta sobre o perigo das vaidades. Esse texto é de profunda atualidade, pois, vivemos numa época de culto ao eu. Para mim, nada ilustra isso tão bem, que a cultura do “selfie”. O selfie é uma forma de fotografar onde quem fotografa aparece destacado em primeiro plano. Essa cultura da passarela parece fazer parte de nossa sociedade. Elogia-se muito quem chegou em primeiro lugar, quem mais vendeu, quem faturou mais... Veja bem, quase sempre, tudo isso é posto a serviço de ganhar dinheiro. O corpo humano, às vezes, não passa de uma vitrine para as modas que irão render rios de dinheiro para poucos. Realçando ainda mais, essa postura de culto ao eu, existe um fortalecimento da meritocracia individual. De posse dessa mentalidade o indivíduo, o uso da palavra “indivíduo” foi proposital, se julga sempre merecedor do que tem ou conquistou. “Se tenho minha casa própria foi mérito meu!” – Será? Será que ninguém o ajudou nesse processo? Será que conseguiria isso, se não fosse uma política pública de habitação, ou  o empréstimo de algum amigo? 

Na vida cristã corremos o mesmo risco de endeusamento de si mesmo ou do próprio trabalho. Muitos líderes buscam na mídia uma forma de estrelato. Nesse palco iluminado funcionam (?) como verdadeiros gurus de nosso tempo. Pronunciam sobre tudo, desde teologia moral a mecânica de automóveis... São pequenos deuses que buscam “likes” e curtidas o tempo todo para engordar suas  economias.  

O ensinamento de Jesus visa despertar em nós, a humildade. Não somos apenas servos, somos servos inúteis! Deus não precisa de nós e nem nos deve nada! Nós é que lhe devemos tudo, a começar pela própria existência. Aos fariseus, pelo jeito, faltavam humildade. Pensavam que, pelo fato de cumprirem, fielmente, aos ditamos da lei, Deus deveria salvá-los. Afinal, teriam colecionado muitos méritos... Lá vem a tal meritocracia, outra vez! Como podemos nos envaidecer se tudo o que temos recebemos do Pai, a começar pela nossa própria vida, que nem é nossa, é presente de Deus?  Se carregamos algo valioso, em nós, isso veio do céu. A fé, por exemplo, é um grande dom de Deus. Continuamos sendo os burrinhos, mal cheirosos, que transportamos pelas montanhas da vida os grandes tesouros...

Como se afastar das armadilhas do mundo que fazem a gente se considerar muito especial; pensar  que merecemos muito,  que somos isso e aquilo? Mais uma vez, cito São Francisco de Sales:

Diz-se que certo passarinho, por nome tataranho, tem uma virtude secreta, no seu grito e nos seus olhos, de afugentar as aves de rapina e crê-se ser esta a razão da simpatia que as pombas lhe dedicam. Assim, nós também, podemos dizer que a humildade é o terror de Satanás, o rei do orgulho, que ela conserva em nós a presença de Espírito Santo e de seus dons e que, por isso, foi tão apreciada dos santos e santas e tão querida dos Corações de Jesus e de sua Mãe (Filoteia – Parte III, Cap 04).

Gosto dessa citação. A vaidade nos coloca nos caminhos do diabo, mas a humildade nos afasta do mal. Ser humilde não é sinônimo de ser pobre. A pobreza, automaticamente, não leva ninguém à humildade assim como a riqueza, automaticamente não leva à vaidade. Conheço pobre com cabeça de rico que come abóbora e arrota lombo; conheço ricos que tem um coração de pobre, embora, seja um pouco mais raro.

Para concluir cito uma santa, de minha devoção: Quero ser apenas  um pincel nas mãos de Deus. Ele é o artista. O pincel sou eu. Por mim mesma não sou capaz de fazer  nenhuma obra de arte. Mas, nas mãos de um grande artista posso criar maravilhas... Pensar assim, pode ajudar-nos, a não cairmos nas armadilhas do diabo. Jesus disse numa de suas parábolas. Eu sou a videira e vós os ramos. Sem mim, nada podeis fazer. Então, nossa ação pastoral será tanto mais fecunda, quanto mais unidos, estivermos com Deus. São Paulo dizia: Eu tudo posso, naquele que me fortalece. Nas mãos de Jesus um pouquinho de barro pode curar um cego. Em nossas mãos esse barro nada faz além de sujar. Pense nisso!

Foto em destaque: Arquivo pessoal