A melancia amarga

 

A história que vou contar não é minha. Tirei-a do “Masnavi,” um livro de espiritualidade islâmica escrito por Rumi, místico e poeta persa do Séc XIII:

Luqman, o Sábio, que é às vezes identificado com Esopo, e outras vezes com o sobrinho do profeta Jó, embora “dotado de sabedoria por Deus”, era um escravo. Seu senhor, porém, descobriu seu valor e tornou-se extremamente apegado a ele, de tal modo que jamais recebia uma iguaria sem dar uma parte a Luqman. Um dia, tendo recebido uma melancia, deu a Luqman a melhor parte, e Luqman devorou-a com tão evidente prazer que seu senhor sentiu-se tentado a provar dela. Para sua surpresa, descobriu que era muito amarga, e perguntou a Luqman por que não lhe dissera. Luqman respondeu que não cabia a ele, que vivia da generosidade de seu senhor, queixar-se de vez em quando recebesse coisas desagradáveis de suas mãos. Assim, embora escravo na aparência exterior, Luqman demonstrou ser um amo.

Gostei dessa história pela grande lição que ela nos transmite. Hoje mesmo recebi uma fotografia de uma amiga que celebrava seu vigésimo aniversário matrimonial. Parabenizei-a pela ocasião, pois, afinal de contas, vinte anos não são vinte dias! Disse-lhe ainda que, hoje, tanto ela quanto eu, só tínhamos motivos para celebrar. Depois de uma pandemia avassaladora que ceifou milhares de vidas em todo mundo, o simples fato de estarmos vivos já seria suficiente para agradecermos a Deus. Depois da mensagem recebi de sua parte, uma fotografia antiga com amigos em comum.  De todos que estavam na foto, apenas, três pessoas ainda viviam. Estar vivo já é um grande motivo para celebrar!

Infelizmente algumas pessoas reclamam o tempo todo e se esquecem de agradecer. Reclamam de Deus, da vida e das pessoas. O personagem da história recebeu um pedaço amargo de melancia e comeu com gosto lembrando que a vida toda comera melancias doces. Então, não podia reclamar se, naquele dia específico, o “patrão” resolveu dar-lhe, um pedaço amargo. A gente não pode querer tudo da vida e, na maioria das vezes, reclamamos de barriga cheia. Quantas vezes, reclamamos de alguém, por causa de uma única atitude desse alguém que nos prejudicou? Parece que tudo de bom que ele fez ficou esquecido e a gente se lembrou de, apenas, aquilo que nos prejudicou.

Nossa relação com Deus também é assim. A vida toda Deus nos ofereceu melancias doces. O dia que recebemos  um pedaço amargo reclamamos e nos esquecemos das inúmeras vezes que fomos beneficiados por Ele. Deus nos deu forças para criar a família, para construir a casa própria, comprar um carro... Mas, nós reclamamos dele por um único reumatismo herdado na velhice. O que pode mudar esse nosso jeito de ser? Só o amor:

Através do amor, o que é amargo parece doce,

Através do amor, as dores são como bálsamos,

Através do amor, um revés da fortuna parece boa sorte.

Através do amor, uma prisão parece um jardim de rosas,

Através do amor, as pedras duras tornam-se macias como manteiga,

Através do amor, os vampiros se convertem em anjos.

Através do amor, o rei se torna escravo e os mortos ressuscitam...

 

Rumí, Maulána Jalal- ud-Din, Muhammad I, 1207 – 1273. Masnavi. Trad. De Mônica Udler Cromberg e Ana Maria Sarda. Rio de Janeiro; Edições Dervish, 1992 – Livro II, PP - 105

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