Salvo pelo gongo, digo pelo anjo

Com o avançar da hora o tempo para mim, naquele dia, ficava cada vez mais curto. Então, me pus a mentalizar: Cada coisa no seu tempo, cada c...

Com o avançar da hora o tempo para mim, naquele dia, ficava cada vez mais curto. Então, me pus a mentalizar: Cada coisa no seu tempo, cada coisa no seu tempo! Tal qual um mantra, ia repetindo isso para mim mesmo, enquanto fechava a porta da loja. Nesse meio tempo ela foi chegando como se fosse muito íntima e abrindo o verbo: - Saiba que eu já não aguento mais! – Boa tarde, eu disse-lhe. Ela, pelo visto não, ouviu. Vagamente, eu me recordava de sua fisionomia mas, quanto ao seu nome, por mais que eu puxasse a cordinha da memória nada conseguia pescar. – Ângela? Será Ângela? Não. Ângela não tinha esse formato de cuia no cabelo... Tereza? É. Talvez, seja Tereza. Não. Também não deveria se chamar Tereza a dita cuja. Então, simplesmente, me calei e continuei a ouvir o seu desabafo: - Essa noite ele não comeu nada e já nem consegue dormir. Agora estou perdida e não sei o que faço... Perdido, estou eu, pensei, não sei com quem estou falando, não sei de quem ela está falando e muito menos como prosseguir essa conversa. Mas, ela facilitou as coisas, pois não parava de falar. Como velha amiga prosseguiu: O senhor se lembra? Naquela época que o senhor o conheceu ele estava bem melhor. Até brincava com a gente. Bingo! Ela deve estar falando de alguma criança, quem sabe um neto ou sobrinho... Mas, a coisa desandou de vez,  quando afirmou: - Agora está com as orelhas grandes e não permite que eu as limpe direito. - Se não for gente, deve ser lobisomem, pensei. Continuei mudo fingindo alguma perturbação para trancar a porta. Ela não dava um tempo. Falava como quem comeu língua de Pica-pau quando criança: - Chora a noite toda e ainda recusa a comida... Que coisa, heim! Afirmei, com a cara mais chué do mundo. Até aquele instante eu, simplesmente, não sabia quem era aquela mulher nem de quem ela estava falando.

Dizem que todos nós temos um Anjo da Guarda que nos acompanha. Mas, até o meu Anjo parecia distraído naquela hora e me deixava fritar sozinho em plena calçada. Ledo engano! Enquanto minha agonia se prolongava a outra vizinha desceu a rua e me salvou do embaraço: - E o seu cachorro, melhorou Zilda? Bingo de novo! Ela se chama Zilda e o enfermo é um cachorro! Graças a Deus fui salvo pelo gongo, ou seja, pelo anjo da vizinha. Eu que me martirizava e me condenava por não lembrar-me o nome da dita cuja, agora recebi tudo de graça! Ela era a tal da Zilda e o enfermo era o seu cãozinho, um vira-latas caramelo, puro sangue, pelo qual nutria grande estimação. Já pensou que confusão poderia gerar se eu tivesse trocado as bolas? Por isso, eu digo que é melhor assuntar primeiro antes de ir falando qualquer coisa. Além do mais, prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!  Com a cara aliviada consolei Zilda e disse que a qualquer hora iria visitar o seu paciente, ou seja, o Totó. O nome “Totó” me veio de graça, pois quando a visitei, há quase um século, era Totó pra lá e Totó pra cá o tempo todo. Junto ao nome do cãozinho lembrei-me também do nome do marido dela: Totonho, pode?  Ô vida boa!

Inté, mais vê, gente!

Imagem de 41330 por Pixabay

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  1. Coisas assim sempre acontecem comigo. Difícil é decifrar quem é o sujeito e o objeto em detalhes. Por isso, prudência, sabedoria e paciência nos ajudam bastante até que a mente atualize o sujeito e objeto indeterminados...

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  2. Obrigada Padre Gabriel por me proporcionar minutos agradáveis!
    Esse foi muito divertido!!!
    Já passei por situações assim kkkk

    ResponderExcluir
  3. Sem nenhum compromisso de passar alguma reflexão importante o conto foi agradável de se ler, e tudo que envolve cachorro me atrai, certo que qualquer ser vivente merece nosso cuidado.

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