Uma cama de solteiro

  Ela teve um único filho que era a razão de sua vida e todos os dias cumpria um ritual sagrado: Fofava o colchão de palha onde ele dormia e...

 


Ela teve um único filho que era a razão de sua vida e todos os dias cumpria um ritual sagrado: Fofava o colchão de palha onde ele dormia e estendia sobre a cama um lençol mais branco do que a neve. Naquele tempo as coisas não eram tão fáceis quanto hoje. Sabonete, por exemplo, era artigo raro. Por isso, o sabão era feito em casa. Ela fazia um sabão, perfumado com folhas de patchouli e tão cremoso como nunca vi nada igual. Com esse sabão lavava as roupas de José, esse era o nome do seu filho, um rapaz bonito e educado que atraia, facilmente, a amizade de todos. Alvejava a roupa dele com sabão feito com decoada uma espécie de alvejante, natural, resultante da água coada nas cinzas. Dona Emília, vivia em função de seu marido Vital e de José, o seu filho.

Num dia fatídico, o moço perdeu a vida de forma prematura e com ele morreu boa parte da mãe. Não havia palavras que coubesse em seu sofrimento e, depois disso, ela nunca mais foi a mesma. Seu sorriso apagou-se e, junto com ele, apagou também o brilho dos olhos. Apesar de tudo isso, teve que remar o barco da vida, agora sem a energia que, antes, fazia o movimento do barco. Quando o filho era vivo ela tinha um sorriso largo e muita agilidade com as mãos. Procurava agradá-lo, nos mínimos detalhes e ele, como sempre, correspondia aos esforços da mãe.

Com finalidade de proteger os frutos de marmelo, para agradar ao filho, ela tombava os ramos do marmeleiro e embrulhava seus frutos ainda verdes.  Assim, os bichos não atacariam os frutos antes da hora. Era comum ver, ao lado de sua casa, o marmeleiro cheio de frutos embrulhados em paninhos brancos como noiva prestes a entrar na igreja. O cenário ficava ainda mais lindo sob os raios do sol e o balançar dos ventos.  O marmeleiro parecia também festejar os cuidados de Emília e o seu amor pelo filho. Quem diria que, mais tarde ele também secaria de tristeza e deixaria de produzir os seus frutos? Depois do sinistro ele foi abandonado junto com o barreleiro cheio de cinzas. Já não se alvejava as roupas e nem se colhia mais frutos. Dona Emília só não se esqueceu da cama de solteiro onde o filho dormia. Enganando a própria dor, todos os dias revolvia as palhas do colchão e o cobria com um lençol branco esperando que o filho viesse se deitar. Alguns vizinhos chegaram a suspeitar de sua sanidade mental. - Doida? – Talvez! Como entender a dor de quem perdeu toda a razão de sua existência? Metade da mãe, senão mais, morreu junto com o filho. Os vizinhos olhavam-na, consternados, mas, ninguém ousava impedi-la de arrumar, todos os dias, a cama de solteiro no quarto da sala...

Imagem de Van3ssa 🩺🎵 Desiré 🙏 Dazzy 🎹 por Pixabay

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  1. Muito bonita a crônica, mas triste, e o que eu mais tenho medo é perder uma parte de mim, acho que não resistiria,acho, também acredito que Deus vai me amparar.Mas peço sempre a Deus para que eu não passe por este momento.

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  2. A história é muito bonita e mostra o grande amor que ela tinha pelo marido e mais ainda pelo filho, porém, infelizmente parece que no coração dela não sobrava espaço pra Jesus morar lá também, se Jesus lá estivesse com certeza Ele derramaria seu bálsamo e seu amor preencheria todo o coração desta mãe tão dedicada,valeu padre obrigado.

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  3. A verdadeira morte é aquele que é esquecido.

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  4. Creio que as vezes nos apegamos tanto as coisas, as pessoas e deixamos de acreditar na nossa própria capacidade e no amor maior que e o amor de Deus.
    Mesmo que percamos algo ou alguém nunca devemos desaminar e sempre entregar nas mãos de Deus pois os planos de Deus são os melhores para nossa vida.

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  5. Muito lindo e também muito triste ☹️

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  6. Esta crônica foi escrita com detalhes que nos leva a ter ainda mais consternação por uma mãe amorosa demonstrado, em atitudes como o fofar do colchão de palha. Loucura de amor é bem entendido se tratando de filho.
    Novamente parabenizo inclusive pelo capricho em escolher o fado que transmite tanta emoção.

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  7. Um dia um filho sai pra longe de sua Mãe...uma saudade abraça e feri o peito daquela,mulher,que caminha com fé... Os olhos brilham e lágrimas rolam em sua face!Esta mulher perde o sorriso nos lábios. Isto é muito triste, Que Nossa Senhora console todas as mães deste mundo,Ela que sentiu a dor da saudade de seu Filho Jesus Cristo,vem socorrer com carinho,todas as Mães que chorar a falta de um filho!

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  8. Parabéns, Padre!
    Belo conto rico em descrições tão detalhadas que nos faz participar das cenas... Antes da morte do filho, os detalhes de alegria, de carinho, de entrega total da mãe à vida daquele único filho amado com tanta devoção.
    Depois da morte dele, os detalhes tornam-se cinzentos, nublados, tristes...e nós, leitores, somos tomados de uma tristeza profunda pela dor da mãe.
    Conto muito triste e que mostra a realidade de muitas mães...
    Às vezes, me pego pensando em como algumas mães que perdem seus filhos prematuramente conseguem continuar vivendo...
    Só Deus mesmo pra fazê-las seguir a vida...
    Dar continuidade à vida sem a presença de nossos entes queridos que partiram é tão difícil!!

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