Velhice

Achava gozado quando meu pai era vivo e recebia algumas visitas em nossa casa.  Nas tardes quentes de domingo quando a monotonia se apossava...

Achava gozado quando meu pai era vivo e recebia algumas visitas em nossa casa.  Nas tardes quentes de domingo quando a monotonia se apossava de todos, logo surgia a conversa: Você se lembra do fulano? Tive notícias que ele morreu de desgosto depois que se mudou para Goiás por causa de sua filha mais nova... Sabe quem encontrei outros dias, por acaso? O irmão de sicrano. Agora ele está gordo feito um capado. Foi bom tê-lo encontrado porque ele me deu notícias de beltrano... Aquela conversa ia longe e eu ficava cada vez mais perdido. Em minha meninice, não conhecia nenhum dos personagens daquele enredo. Alguns eu conhecia de nome, pois sempre voltavam nas histórias de meu pai. Assim, foi com o Binidito, com a Tia Guilhermina ou o João Juca e mais uma meia dúzia de pessoas das quais eu não fazia ideia.

Hoje entendo muita coisa daquele tempo. Agora quem conta as histórias envolvendo personagens de outras eras sou eu. Velhice é assim: A memória remota é mais eficiente que a memória recente. Lembro-me, com clareza, até dos tocos ou pedras de alguns caminhos por onde andei quando jovem.  Mas, por favor, não me pergunte pela senha do “Wi-fi” ou pelo Cep de minha rua! Hoje entendo porque meu pai falava tão bem de fatos antigos. Sem querer acabo repetindo a mesma novela. Não sei por que, em certa altura da vida a gente começa a gostar de falar do passado. Nossos discursos são tomados por um incorrigível romantismo. O mundo de antigamente passa a ser visto como melhor do que o mundo de hoje. Esquecemos que “no antigamente” também se lambiam brasas...

Sempre que me vejo atacado de romantismo procuro tomar um choque de realidade e perceber que em todos os tempos tivemos coisas boas e coisas ruins. O passado valeu como experiência e o futuro vale enquanto portador de esperança. Mas, o que conta mesmo é o presente e é nele que temos a oportunidade de agir. O presente, no entanto, carrega o mistério da esfinge que precisa ser decifrado. Quando não conseguimos isso podemos ser devorados por ele. O presente está cheio de encantos e possibilidades, mas nem todo mundo consegue perceber isso. Deus queira que você consiga!  

Apesar de meu esforço em andar “antenado” com o presente confesso que também sou de carne e osso, mais carne do que osso, na verdade. Por isso, de vez em quando, tenho recaídas e acabo idealizando o passado. Como explicar esse meu estranho gosto por Carlos Gardel, Nelson Gonçalves, Erivelton Martins e tantos outros?  Certa vez, confessei ao meu sobrinho meu gosto pela música de Amália. Em seguida ele me perguntou: Mas, isso não é macarrão tio?  Quase morri de susto diante do fosso que nos separava. Como também gosto de massas acabei concordando com ele e me dei bem. Gosto muito de macarrão, eu disse, e me silenciei para sempre. Pobre dama que cantou “Coimbra”, “Foi Deus”, “Casa Portuguesa” e tantas outras músicas inesquecíveis! Em dois tempos, foi reduzida à marca de macarrão.

Percebo que alguns dos meus “malungos” exageram, um pouco, no esforço de "andarem antenados". Dizem que ainda “estão na pista”, fazem tatuagens na lateral das pernas e prendem os cabelos no melhor estilo “rabo de cavalo”, isso quando lhes sobra uma buchinha de cabelo no alto do cocuruto. Confesso, que inda não atingi esse nível de perfeição!  Observando a tatuagem de uma amiga dessas  “antenadas” perguntei se o desenho era uma cabeça de elefante, quem sabe, poderia ser Ganesha?  Não! Ela retrucou com veemência: É uma borboleta! O problema é que de tanta pelanca a borboleta saiu voando... Mas, é claro que eu não disse nada disso. O que disse foi bem diferente: Nossa! Que linda! Parece uma borboleta do Himalaia. Mais uma vez fui salvo pelo gongo, pois ela não tinha a menor ideia do Himalaia e eu nem sei se as  borboletas sobrevivem  no gelo...  

 Foto: https://www.pexels.com/pt-br/foto/homem-com-tatuagem-de-inseto-no-pescoco-1414401/

O vídeo abaixo é só mais um ataque de romantismo:

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  1. Pós é Padre Gabriel. Eu também me deparo com situações semelhantes! E para não pagar mico, só observo!

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  2. Muito bem definido o que muitos de nós passamos! Parabéns pela coragem de tornar publico o que não temos coragem kkkkkk

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  3. Ao ler este excelente texto, fiquei imaginando minha trajetória existencial. Minha memória também está buscando no passado as muitas lembranças consolidadas. Creio que ler, fazer palavras cruzadas, exercitar a memória ajuda muito na percepção da realidade atual. Na verdade, a velhice sempre será nossa sorte. E que sorte, viver pra contar nossa história!

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  4. Parabéns! Amei o texto. Mas não tem como negar? me identifiquei com o tema. Rss

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  5. Queria envelhecer assim com sabedoria.É verdade , envelhecemos e nos saboreamos com o passado, lembranças e mais lembranças, nós faz feliz, e acredite nos mantém vivos.Cada parágrafo do seu texto 3 uma viagem.Obrigada por nos proporcionar tão deliciosa leitura.

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  6. Kkkk. Eu ri tanto, que meu ficou desopilado , como faz bem ler as crônicas, textos, inspirações do Sr.

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  7. Me lembro muito é das perguntas sobre uiconhecidos que a muito não se via. E fulano tá bão? Eles tão bão. E ciclana? Há, tá sempre naquela gemurra, a mesma perrenguisse. Kkkk do Zé betio. Saudade demais

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  8. Padre, a palavra VELHICE é por si só um som que lembra chatice... não que não goste de pertencer a esse estágio da vida...fico feliz de ter conseguido vencer a todos!
    Fui obrigada a estar sempre antenada pra conseguir me comunicar melhor com meus alunos adolescentes. Não achei ruim...
    Sabe bem que sou fã de suas crônicas.
    Adorei Amália ter sido reduzida à marca de macarrão e a borboleta tatuada ser do Himalaia...o problema é que de tanta pelanca, a borboleta saiu voando...kkk

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  9. Que texto gostoso de ler! O tema é serio mas com humor, inclusive é comum pessoas com saudosismo crônico sempre dizendo: "No meu tempo", o tempo passado é sempre melhor que o presente.
    Avalio o Senhor como uma pessoa do presente, do agora, e se olha para trás é como um retrovissor, apenas para não cometer acidentes.
    Quanto a preferencia musical, eu parabenizo pelo gosto porque tá dificil ouvir a maioria das músicas que tem feito sucesso na atualidade.

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  10. Excelente texto Padre Gabriel. Também" desopilei meu fígado " na leitura de tanto rir.E é claro me identifiquei em várias passagens .

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  11. Que delícia de leitura!!
    Já te falei, vc é uma biblioteca ambulante, sorte nossa!
    Parabéns pelo texto, pelo escolha do tema. AMEI🌼

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