O dia que passei vergonha

  Era uma manhã como as outras. Na época eu morava no seminário, em Belo Horizonte e uma das minhas funções era cuidar da horta, um trabalho...

 


Era uma manhã como as outras. Na época eu morava no seminário, em Belo Horizonte e uma das minhas funções era cuidar da horta, um trabalho que sempre gostei. Até hoje procuro cultivar uma hortinha no fundo do quintal. Por volta de dez horas, a campainha deu sinal pois, naquele tempo, ainda se usava “tocar a campainha”. Ao atender a porta vi duas senhoras, maltrapilhas e encarquilhadas que traziam nos rostos as marcas da pobreza. Após breve conversa, uma delas me pediu umas folhas de couves. Certamente, me viram trabalhar na horta e, por isso, me pediram verduras. Sem nenhum pudor interroguei-as: Porque as senhoras não andam separadas? O que tenho para uma, pode ser pouco para as duas...

Confesso, que até hoje sinto vergonha disso. Mas, naquele dia, aprendi uma grande lição para nunca mais me esquecer. Uma das senhoras olhou-me, com ternura, e disse: - Olha, moço, não tem problema andarmos juntas, pois, se o senhor nos der, ainda que seja uma folha de couve, a gente vai dividir entre nós! Naquele momento, desejei que o chão se abrisse para me engolir vivo. Era o próprio Cristo que questionava a minha mesquinhez. Enquanto pensava de forma egoísta salvando apenas o individualismo, aquelas mulheres partilhavam tudo, apesar de suas misérias...

Com essa história real começo minha reflexão sobre uma passagem do Evangelho de São João (Jo 6, 1- 15). O texto nos diz que Jesus foi para o outro lado do Mar da Galileia e que uma grande multidão o seguia. Diz-nos, ainda, que estava próxima a páscoa dos judeus. Assim como um novo Moisés, Jesus atravessou o mar conduzindo o seu povo. Moisés atravessou o Mar Vermelho tirando o povo da escravidão. Jesus liberta o seu povo da fome mas, principalmente, do egoísmo. Ao ver aquela “grande multidão” Jesus interrogou Filipe: - Onde vamos comprar pão para essa gente? Parece que ele quis experimentar o próprio Filipe, pois, o texto afirma que ele sabia muito bem o que iria fazer. Assim como a maioria de nós, Filipe já começou sua fala, elencando as dificuldades: - Nem duzentas moedas de prata bastariam para resolver esse problema! Talvez, pensasse que a distribuição só pudesse acontecer após a acumulação. Não é assim que muita gente pensa ainda hoje? Primeiro é preciso acumular para depois dividir... E, quase sempre, depois que acumula morre sem fazer a divisão. Além disso, nunca acumulam bastante como desejariam. Enquanto isso, muitos, padecem por não terem o mínimo necessário para a subsistência.

A “salvação da lavoura” veio a partir de outro Apóstolo chamado André. Esse nome quer dizer “humano”. André demonstrou ser mais humano que Filipe e viu uma saída, uma “luz no fim do túnel”. - Aqui tem um menino com cinco pães e dois peixes... Veja bem, que será um menino a desencadear o processo para solucionar o problema. Nem Filipe nem André perceberam que a solução já estava ali, ou seja, Jesus estava com eles. O povo afirma com muita sabedoria que “o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada”. Mesmo sendo pouco, cinco pães e os dois peixes, foi a parte humana para que o milagre pudesse acontecer. Deus faz milagres mas é importante uma participação mínima de nossa parte...

O que percebemos em seguida foi interessante: Jesus organiza o povo e manda-os assentar. Tomou os pães e rezou. Não agradeceu ao menino nem a André. Ele sabia que todo alimento é dom de Deus. Por isso, agradeceu a Deus. Pediu para distribuir os pães de forma organizada e não deixou desperdiçar as sobras. Aqui temos uma grande lição: O que é partilhado rende! Mesmo que seja uma única folha de couve, se ela for partilhada irá render. O problema da fome continua porque o egoísmo de alguns não permitem a partilha. Se um come o bolo sozinho irá faltar bolo para os outros....

É muito triste a constatação que o Brasil, com tantas terras produtivas e tantas farturas, ainda continua no “mapa da fome”. A fome deveria nos escandalizar e acordar a nossa consciência cristã adormecida. Que a pessoa não tenha alguns confortos, paciência! Mas, que não tenha comida no prato é uma tristeza! Só existe fome no mundo porque temos egoísmos de sobra. A história das couves foi uma confissão pública de meu egoísmo. Mas, naquele dia, Deus me deu uma lição para eu nunca mais me esquecer: Ainda que eu tenha uma única folha de couve devo reparti-la com quem não tem!  

Foto: Couves de meu quintal.


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  1. Que bom você relatar este acontecido com você!
    Com certeza isso acontece com muita gente diariamente! Mas nem todos tem a mesma sabedoria, para filtrar tudo e extrair o melhor. Tudo se torna mais agradável, qndo compartilhado.

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  2. Os vicentinos dão uma lição e tanto. São a maioria pobres ajudando os mais necessitados

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  3. O Texto que é maravilhoso e a experiência do sr. partilhada nos levam a direcionar melhor nossas energias a uma sociedade melhor.
    Obrigado! &" Partilhando o pão que Deus dará, e se formos irmãos o pão não faltará!!!"

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  4. Padre vou contestar o passei vergonha, conforme o Padre Lancelotti devemos dizer sempre algumas palavras mostrando atenção além da nossa caridade porque nossos irmãos carentes querem serem olhados além de receberem os donativos. Eles se sentem tão invisíveis que mesmo a conversa não tenha sido totalmente adequada, nosso interesse de alguma forma, os fazem sentir melhor.
    Quanto ao mapa da fome no mundo, é uma vergonha para a humaniade! Não precisariamos ter esta condição de vida, simplesmente fazer mudanças nos grandiosos gastos por exemplo, armamentos, viagens espaciais que tem sido prioridade, e não matar a fome.
    Parabenizo todos os governos que estão comprometido com o ser humano, e o cenário da fome em seu país.

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  5. Sempre pedir a Deus que aumente a nossa fé

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