Comer o livro. O que é isso?

 

Vou começar minha reflexão de hoje citando um caso real para depois comentar sobre o texto bíblico. O caso foi relatado pelo professor da USP, Wille Bolle. Tomei contato com essa história a partir de sua entrevista no Youtube  em 24 de junho de 2014, ao Canal, “Literatura Fundamental 42”,  sobre o Livro:  Grande Sertão: Veredas (1), de Guimarães Rosa. O que me chamou a atenção, na entrevista foi o método, “nada ortodoxo”, que ele criou para entender a Obra do autor.

Wille Bolle tomou contato com a obra de Guimarães Rosa enquanto estudante de línguas neolatinas, na Alemanha, em 1966. Depois disso, mudou-se para o Brasil e desejou conhecer melhor o País, a partir da Obra de Rosa. A primeira coisa que fez foi comprar dois exemplares do Grande Sertão Veredas. Mandou cortar a lombada dos livros e colou 450 páginas nas paredes de seu quarto. Então, passou a “morar”, literalmente, dentro do livro para melhor entendê-lo. Ainda assim, pelo visto, não teve facilidade para entender o romance, pois, além dessa “habitação,” leu também os contos do autor na tentativa de decifrar sua obra.

O método do Professor Wille Bolle chamou minha atenção pela originalidade. Também sou grande leitor e admirador de Guimarães Rosa, mas, ainda não tive coragem de cortar os seus livros. Sou brasileiro e mineiro e isso me facilita as coisas. Mas, devo dizer que, ainda assim, Guimarães Rosa não é para iniciantes. Mas, não é sobre esse autor que falarei hoje. O exemplo acima foi a deixa para falar de um texto bíblico do profeta Ezequiel (Ez 2, 8 - 3, 4):

Eis o que diz o Senhor: «Tu, filho de homem, escuta o que te digo”. Não sejas rebelde como aquela gente rebelde. Abre a “boca e come o que te vou dar.» Olhei e vi uma espécie de mão que se dirigia para mim, segurando um manuscrito enrolado. Abriu-o diante de mim: estava escrito nas duas faces; e lia-se: «Lamentações, gemidos e choros.» Disse-me: «Filho de homem, come aquilo que te é apresentado, come este manuscrito e vai falar à casa de Israel.» Abri então a boca e Ele deu-me o manuscrito a comer. E disse-me: «Filho de homem, alimenta-te e sacia-te com este manuscrito que agora te dou.» Comi-o e ele foi, na minha boca, doce como o mel. Então, disse-me: «Filho de homem, dirige-te à casa de Israel, e leva-lhes as minhas palavras”.

O que percebemos no texto é uma ação simbólica e precisa ser entendida assim. Ninguém vai pensar que o profeta comeu um livro, mas que ele assimilou essa mensagem para propagá-la depois. O texto fala de livro como rolo porque, naquele tempo, os “livros” eram enrolados mesmo. Os textos eram escritos em couros ou pergaminhos. Por isso, guardados em forma de rolos.

Deus age diferente com cada profeta quando lhes dá uma missão: Os lábios de Isaías foram purificados com uma brasa (Is 6, 3 -7). Quanto a Jeremias, Deus introduziu sua linguagem na garganta dele (Jr 1, 9). Ezequiel que viveu na civilização da escrita teve que digerir um livro para assimilar a vontade divina. Quem anuncia a palavra deve primeiro alimentar-se dessa palavra. A palavra que Ezequiel foi chamado a digerir tem a doçura do mel, mas também a amargura do fel. Hoje, vivendo numa época digital, ainda não sei quais os mecanismos que Deus usaria como ferramentas para os profetas. Talvez, um teclado, uma câmera, ou um celular que já tem tudo isso...

Acho que todo pregador deve prestar atenção nessa passagem bíblica. Antes de proclamar a Palavra de Deus, é preciso que ela seja assimilada visceralmente. Isso não é muito fácil, pois é preciso tempo, esforço e dedicação. É preciso morar dentro dela para assimilá-la, assim como fez o Professor Wille Bolle para entender um grande escritor brasileiro. O exemplo do professor serve para cada um de nós, pois, também deveríamos “morar dentro da palavra”. Para quem é cristão a Palavra tem nome. Ela é Cristo! Quem dera que pudéssemos morar dentro dessa palavra e que ela pudesse, também, encontrar morada em nossos corações!

Foto: Entrevista do Professor Wille Bolle ao Canal: Literatura Fundamental. A camisa do professor com estampas da capa do livro Grande Sertão Veredas.