Feridas de estimação

  Enquanto dirigia procurando, desesperadamente, um local para estacionar o meu carro, ouvi alguém gritando o meu nome como se fosse um velh...

 


Enquanto dirigia procurando, desesperadamente, um local para estacionar o meu carro, ouvi alguém gritando o meu nome como se fosse um velho conhecido. No aperto da hora, nem pude olhar, sob pena de desviar a direção no trânsito intenso. Mas, o dono da voz me seguiu com o olhar e, mancando, dirigiu-se, ao estacionamento para desfiar, diante de mim, o seu rosário de penas: Eu sou fulano, trabalhei com sicrano e conheço o senhor. Estou precisando de uma ajuda para curar essa ferida na perna. Sem disfarçar certo orgulho, descobriu a perna para eu ver. Uma ferida antiga, talvez, companheira da juventude. Naquela hora, não tive tempo para investigar nada e, simplesmente, lhe dei uma ajuda. Essa nossa falta de tempo concorre em favor de situações desse tipo. Coisas assim, sempre me acontecem, tendo em vista, que sou uma pessoa conhecida na região. As pessoas pedem ajuda numa hora em que você não pode investigar se ela precisa, ou não, daquela ajuda. Confesso que, muitas vezes, já cai no conto do vigário, mesmo sendo o próprio vigário.

É muito curiosa essa condição humana! Alguns parecem usar as feridas como moedas de troca para obtenção de benefícios ou atenção. Vejam o que disse, a esse propósito, Saint-Exupéry em seu livro “Cidadela”:

Houve uma altura de minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas úlceras. Até chegava a apalavrar curandeiros e a comprar bálsamos por causa deles. As caravanas traziam-me de uma ilha longínqua unguentos derivados do ouro, que têm a virtude de voltar a compor a pele ao de cimo da carne. Procedi assim até descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportável fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar, com esterco, aquelas pústulas, como quem estruma uma terra para dela extrair a flor cor de púrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridão e gabavam-se das esmolas recebidas. Aquele que mais ganhava comparava-se a si próprio ao sumo sacerdote que expõe o ídolo mais prendado. Se consentiam em consultar o meu médico, era na esperança de que o cancro deles surpreendesse pela pestilência e pelas proporções. Chegavam a empregar os cotos para conquistar um lugar no mundo. Daí também o aceitarem os cuidados como uma homenagem e oferecerem os membros a abluções bajuladoras. Mas, apenas o mal os deixava, descobriam-se sem importância.  Já nada alimentava que fossem deles próprios, dava-se por inúteis. O único remédio era ressuscitar de novo essa úlcera que vivia à custa deles. E, uma vez envoltos de novo no seu mal,  gloriosos e vãos, pegavam na escudela e tornavam a empreender o caminho das caravanas. Voltavam a espoliar os viajantes em nome dos seus sórdidos deuses...

A constatação acima é trágica além de triste, embora seja, em muitos casos, verdadeira. Algumas pessoas usam as próprias feridas para adquirir favores e atenções. São feridas de estimação, sem as quais, não conseguem atenção. Por isso, não sabem viver sem elas. Alguns escolhem a doença como companheira e se orgulham de tê-la, pois assim, todos irão ouvir suas lamúrias e apiedar-se dela. Deus não nos deu o direito de julgar ninguém, mas, há casos que são bem conhecidos e nem os médicos aguentam mais certos pacientes.  

O assunto que mais agrada algumas pessoas é falar de suas doenças ou das doenças alheias. A doença, para alguns, tornou-se muletas sem as quais não conseguem caminhar. Foi uma forma encontrada para atrair atenção e piedade alheia nesse mundo tão marcado pela frieza e indiferença.  Nas calçadas de nossas cidades algumas pessoas exibem suas feridas para ganhar dinheiro e atrair a piedade dos passantes. Saint-Exupéry em seu tempo (ele faleceu em 1944) já havia anotado isso sobre os mendigos: “Mas, apenas o mal os deixava, descobriam-se sem importância.  Já nada alimentava que fossem deles próprios, dava-se por inúteis. O único remédio era ressuscitar de novo essa úlcera que vivia à custa deles...” Que tristeza! Adotar as feridas como companheiras de vida! Nossa vida é curta demais para que alguém goste de sofrer. Alguns sofrimentos, naturalmente, são inevitáveis. Mas, de outros devemos fazer tudo para não tê-los como companheiros de viagem.

Pense nisso!

Livro citado: Cidadela, de Antoine de Saint- Exupéry. Trad: Ruy Belo.  Quadrante, Lisboa/São Paulo, 1966

Imagem de StockSnap por Pixabay

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  1. Infelizmente existem as doenças inevitáveis, mas ainda há as feridas de estimação! Conheço pessoas que têm doenças de estimação! Ao conversarmos com elas, só falam em doenças! E o pior, parecem orgulhar- se desta situação! Muito triste!

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  2. Fico preocupado porque é difícil saber se o pedinte precisa realmente de ajuda ou estou sendo estorquido, se dou a ajuda penso que fui bobo, se não dou a ajuda penso que faltei com a caridade. O que tento fazer é ouvir o meu coração,tem momentos que dou ajuda e em outros momentos não dou nenhuma ajuda e assim vou levando. O que complica tudo é que alguns pedintes inventam histórias mirabolantes que conseguem me enganar e isso me deixa nervoso.....este é um assunto que devemos entender melhor, obrigado padre pela reflexão.

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